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sábado, 27 de julho de 2013

O retrato de um gigante chamado Tolstoi

Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S. Paulo
Influência de Tolstoi volta a ser sentida um século após sua morte. Biografia associa autor russo a personagens divididos de seus romances.
Tolstoi, autor de Anna Karenina
Tradutora e biógrafa de Chekhov, a acadêmica inglesa Rosamund Bartlett nem sequer pestanejou quando seu agente lhe perguntou há oito anos, ao concluir a biografia do autor de As Três Irmãs, qual seria seu objeto de estudo seguinte. “Tolstoi”, respondeu a acadêmica, especializada em literatura russa e conhecida no meio musical por seus estudos sobre Shostakovich. Lançada há três anos na Inglaterra, para marcar o centenário de morte do escritor, Tolstoi - a Biografia chega agora ao mercado brasileiro pela Editora Globo. É um monumental estudo sobre as contradições de um autor não menos grandioso, um gigante que, em sua definição, “queria ser maior que a vida”. E foi. A influência de Tolstoi, diz a pesquisadora, por telefone, de Londres, volta a ser sentida um século após sua morte no resgate de um certo cristianismo primitivo – ao qual a Igreja Católica se dedica – e nas manifestações antibélicas que pipocam num mundo bárbaro e militarizado. Pacifista, ele foi a grande influência de Gandhi e mentor de sua filosofia de não violência, lembra a biógrafa, destacando o papel do autor de Guerra e Paz como educador, um homem que abriu mão de sua origem aristocrática para ensinar seus servos analfabetos quando isso era impensável na Rússia czarista – ainda que tenha abusado sexualmente deles em sua “senzala” de Iásnaia Poliana, propriedade rural da família, onde mantinha 300 criados, satisfazendo na cama seus desejos interclassistas. O senhor das terras Tolstoi não era do tipo que levava a luta de classes para dentro de casa. Para isso, já bastavam as brigas com sua burguesa mulher Sófia Behrs (depois Tolstaya), retratada com maior simpatia na biografia de Bartlett que no best-seller A Última Estação (1990), do norte-americano Jay Parini, em que ela beira a histeria. Rosamund não leu o livro, mas viu o filme. “Há nele uma certa trivialização que distorce o conflituoso relacionamento que Tolstoi manteve até o fim da vida com a mulher”, observa a biógrafa, evocando as constantes brigas do casal por absoluta discordância ideológica. Ela, filha de um médico, pensava na herança dos filhos (eles tiveram 13, dos quais 8 chegaram à vida adulta). Ele, já seduzido pelos ideais socialistas e após renunciar ao título de conde, pensava nos camponeses e discípulos, em nome dos quais abria mão dos direitos autorais. Parini até aborda a questão, mas romantiza a relação. O nobre Tolstoi, filho de conde e princesa, já era vigiado pela polícia secreta do czar em sua Iásnaia Poliana, quando se casou com Sófia, em 1862, três anos após abrir a primeira escola para os filhos dos camponeses da região. Continuou perseguido 20 anos depois, após renunciar à fé ortodoxa e pedir clemência para os assassinos do czar Alexandre II, que vendeu para os americanos o Alasca (onde o tio de Tolstoi foi abandonado). Numa Rússia em turbulência pela morte do czar, acossada pela supressão dos direitos civis e a brutalidade policial, Tolstoi formou um verdadeiro exército de seguidores de sua filosofia – que cruza os quatro Evangelhos, o vegetarianismo, o pacifismo, o controle interno do corpo (ele, que teve uma vida dissoluta antes de sua conversão) e a desobediência ao poder constituído. Tolstoi foi excomungado pela Igreja Russa, que o tornou proscrito em 1901 – por “pregar fanaticamente contra o dogma ortodoxo”. Na verdade, ela tentava minar sua influência.

A biógrafa concede bastante espaço ao papel de Tolstoi como líder da nação e aos ancestrais do escritor, associando, quando necessário, sua vida à obra. Ela não chega a dizer que Tolstoi era Anna Karenina de calças, mas há uma série de personagens que a biógrafa identifica no autor. “Há muito do Vronski de Anna Karenina e do Nekhlyudov de Ressurreição em sua personalidade, além de nítidas referências aos antepassados em seus romances”, diz, lembrando que Tolstoi, após sua conversão religiosa, em 1877, não apenas renunciou aos prazeres sensuais, ao fumo e à bebida, como adotou uma atitude confessional em seus livros, mais exatamente em Ressurreição, sua obra derradeira. Tolstoi usa como avatar Nekhlyudov, que, ao se tornar militar (e Tolstoi foi um deles na juventude), é corrompido e corrompe Katiusha, até o mea-culpa final, quando a segue até a Sibéria e se dá conta do sofrimento dos prisioneiros políticos. Esse movimento circular não indicaria um sujeito bipolar? “Não arriscaria um diagnóstico médico, pois não sou da área, mas, evidentemente, persistia nele um certo desequilíbrio, notável em gênios ou artistas como Nureyev, para os quais uma vida parece pouco diante de tudo o que aspiram”, diz Rosamund, que se dedica justamente a uma nova tradução inglesa de Anna Karenina, uma mulher além de seu tempo, na qual ela identifica alguns traços da personalidade de Tolstoi. “Há um forte elemento feminino que faz com que Tolstoi pense nas mulheres de maneira diferente de seus contemporâneos.” Gorki dizia que Tolstoi amava Chekhov, admirando o jeito delicado e feminino como o dramaturgo andava no parque. Bartlett insinua que a falta de confiança da mulher de Tolstoi em seu amigo e discípulo Chertkov não se restringia a questões políticas ou filosóficas. De fato, em seu diário, Sófia acusa Chertkov de ter tomado seu lugar no coração do marido, criticando a paixão senil do escritor e acusando-o ainda de escrever cartas secretas de amor ao discípulo. “Chertkov usou sua influência junto ao escritor para conseguir os direitos sua obra e, ao partir para o exílio, em 1897, um ano após ser criada a primeira colônia tolstoísta na Inglaterra, já pensava em fundar uma editora para publicar seus livros em inglês”. O discípulo voltaria para morrer em Moscou em 1936, quando foi aprovada a Constituição Soviética, dando poder aos camponeses, sonho de Tolstoi que virou um pesadelo: a ditadura stalinista.

Caetano Veloso - Um Abraçaço

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Dominguinhos: “Pra lá do céu azul”

Do UOL
O cantor e compositor Dominguinhos, de 72 anos, morreu às 18h desta terça-feira (23) no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. O sanfoneiro lutava contra um câncer no pulmão e fazia sessões de quimioterapia havia seis anos. Segundo o boletim divulgado pelo hospital, a causa da morte foram "complicações infecciosas e cardíacas". O governador de Pernambuco, Eduardo Campos, decretou luto de três dias no Estado em virtude da morte do artista. Segundo Ricardo Peixoto, amigo da família e ex-parceiro profissional de Dominguinhos, o local do velório ainda não está definido. De acordo com Peixoto, a família desejava realizar a cerimônia na Assembleia Legislativa de São Paulo, mas o local se encontra em recesso. A ideia dos familiares é encontrar alguém para liberar o espaço para que o velório comece já nesta madrugada. O músico pernambucano, autor de sucessos como "Isso Aqui Tá Bom Demais" e "De Volta Pro Aconchego", havia deixado a UTI após melhora da infecção respiratória e arritmia cardíaca no dia 13 e retornado à unidade no dia 15.  Dominguinhos estava internado desde o dia 17 de dezembro. No dia 22 daquele mês, precisou passar por uma cirurgia para a colocação de um marca-passo cardíaco temporário por conta da arritmia. Nesse período, o cantor foi submetido a uma traqueostomia e hemodiálise. Dominguinhos ficou sem sedação e, mesmo assim, não se comunicava com a família e médicos. No dia 8 de janeiro, ele sofreu uma parada cardíaca no hospital em que estava internado em Recife (PE). A pedidos dos familiares, no dia 13 de janeiro, Dominguinhos foi transferido para o Hospital Sírio-Libanês em São Paulo. Os cantores Fagner, Elba Ramalho, Flávio José, Nando Cordel, Geraldo Azevedo, Jorge de Altinho e Liv Moraes farão um show em homenagem a Dominguinhos no dia 25 de julho, em Recife (PE).
"Meu pai não tinha defeito"
(Veja vídeo abaixo do show dele em Nova Jerusalém, completo)
Muito emocionado, o filho do cantor e compositor Dominguinhos, Mauro da Silva Moraes, lamentou a morte do pai. "Meu pai não tinha defeito, não", afirmou, citando as características do músico que mais o marcaram. "Eu só guardarei coisa boa dele, era generoso demais", disse ao UOL. Para o radialista Paulinho Rosa, amigo pessoal de Dominguinhos, o principal a se lembrar do músico é seu legado para a cultura brasileira. "Talvez um dos maiores gênios que tivemos", disse, citando em seguida aquilo que quem era mais próximo do sanfoneiro podia ver de perto. "Era especial, generoso, sempre muito bom." O compositor Yamandú Costa se disse "arrasado" com a notícia. "É tudo muito triste. Acabei de saber da notícia e estou arrasado. Hoje o Brasil está de luto. Vou fazer um show aqui no Sul, estou rodeado por amigos dele. Hoje o meu show vai ser dedicado a ele. Não sei que música vou cantar, porque estou sem reação ainda", disse. Chico Buarque lamentou a perda de "um amigo e um parceiro querido." Outra artista de peso, a sambista Beth Carvalho, destacou a falta que Dominguinhos vai fazer. "Ele era um grande compositor e uma grande pessoa. Estou lamentando profundamente a morte dele", disse a cantora. Ivete Sangalo desejou paz a Dominguinhos. "Sentirei saudade do seu sorriso, mas você é maravilhoso e nos deixou a sua música", escreveu. Frank Aguiar também aludiu ao paraíso para celebrar o artista. "Mestre Dominguinhos, que Deus te receba num cantinho mais especial do Céu!"  
Vida e carreira
Com Gilberto Gil
Nascido em 1941, José Domingos de Morais, o Dominguinhos, veio de uma família humilde de Garanhuns (PE) e herdou os dotes musicais de seu pai, Chicão, que era sanfoneiro. Com seis anos de idade, aprendeu a tocar sanfona e ia a feiras livres para arrecadar dinheiro. Quando criança, ele formou o trio Os Três Pinguins com seus dois irmãos Moraes (sanfona) e Valdomiro (malê, uma espécie de zabumba). Aos nove anos, já era proficiente em sanfonas de 48, 80 e 120 baixos. Logo depois, ele conheceu Luiz Gonzaga na porta de seu hotel. O músico ficou impressionado e chamou Dominguinhos para ir ao Rio de Janeiro. Mais tarde, ele fez parte da equipe de Luiz Gonzaga e foi reconhecido por cantores da Bossa Nova, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Elba Ramalho e Toquinho. A cantora pernambucana Anastácia fazia parte do grupo de Gonzaga e não demorou a fazer parte da vida de Dominguinhos. Os dois iniciaram uma parceira dentro e fora dos palcos, que os levou ao casamento. No entanto, o casamento com Anastácia não deu certo e Dominguinhos acabou se envolvendo com outra cantora, também pernambucana, Guadalupe. Os dois se casaram e a festa contou com convidados ilustres como Luiz Gonzaga e Genival Lacerda. O primeiro disco de Dominguinhos foi "Fim de Festa", lançado em 1964". O último foi "Yamandu + Dominguinhos", em 2008. Ao longo dessas décadas de carreira, lançou dezenas de discos. Em 2002, Dominguinhos foi vencedor do Grammy Latino com o CD "Chegando de Mansinho". Já em 2010, ele foi vencedor do Prêmio Shell de Música.
Entenda o quadro de saúde

Com Yamandu Costa
Dominguinhos deu entrada no hospital Hospital Santa Joana, em Recife, no dia 17 de dezembro, com arritmia cardíaca e infecção respiratória. No dia 22, precisou passar por uma cirurgia para a colocação de um marca-passo cardíaco temporário por conta da arritmia. O cantor foi submetido a uma traqueostomia e hemodiálise. Dominguinhos ficou sem sedação e, mesmo assim, não se comunicava com a família e médicos. No dia 8 de janeiro, ele sofreu uma parada cardíaca no hospital, que foi revertida. A pedidos dos familiares, no dia 13 de janeiro, Dominguinhos foi transferido para o Hospital Sírio-Libanês em São Paulo. Em março, Mauro chegou a declarar que o quadro do pai era irreversível. A família já havia sido informada do estado de saúde do músico havia alguns meses, mas somente nessa época Mauro decidiu divulgar a informação, em respeito aos fãs. "Estava tentando resguardar meu pai, mas essa é uma informação que as pessoas precisam saber. Dominguinhos é uma pessoa pública e adorada no Brasil inteiro. Muitas pessoas me perguntavam sobre meu pai e acho que chegou a hora de falar", disse ao UOL. Diagnosticado com câncer de pulmão havia seis anos, Dominguinhos sofreu um princípio de infarto no início de 2011, quando foi internado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo.  Ele foi submetido a um cateterismo e a uma angioplastia. Por conta de seu estado de saúde, começou a cancelar shows no final de 2011.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Educação: Conhecimento à venda?

Renato Nunes Bittencourt – da Revista FILOSOFIA Ciência & Vida – edição nº 78.
                    Renato Nunes Bittencourt 
Doutor 
em Filosofia pelo PPGF-UFRJ, professor 
do curso de Comunicação Social da 
Faculdade CCAA, da Faculdade Flama e 
do Departamento de Filosofia do Colégio Pedro II. 
Também é membro do grupo de pesquisa 
Spinoza & Nietzsche
Como o estudante da era pós-moderna não é exigido academicamente por sua instituição, ele acaba por perder qualquer parâmetro avaliativo em sua intelectualidade, enfraquecendo a sua capacidade de pensar, tornando-se um indivíduo alienado em um espaço cultural que deveria justamente promover o progresso da sociedade em suas expressões intelectuais, econômicas e materiais. Saber é uma atribuição adquirida pelo estudo e impossível de ser comprado. Mas, com os poderes instituídos do capitalismo, aliado às instituições meramente mercadológicas, a sociedade reproduz a "ilusão do saber", algo corroborado pela crise da família.
A Educação passa a assumir a forma de "valor",
de algo que pode ser vendido, quando na verdade o
que se compra é o diploma, e não o conhecimento.
Nos tempos do capitalismo tardio, o sonho pessoal de se formar em um curso universitário se tornou uma possibilidade franqueada a todo indivíduo capaz de pagar a mensalidade de uma instituição de ensino; inúmeras facilidades são oferecidas, de modo a se agregar cada vez mais estudantes nos quadros universitários. Em princípio, tal mudança de paradigmas seria algo culturalmente excelente, pois mais indivíduos poderiam se especializar profissionalmente e assim favorecer o desenvolvimento social. Todavia, grande parte das mudanças de paradigmas acerca da flexibilização do acesso ao ensino superior ocorre por questões meramente mercadológicas, pois corporações empresariais, camufladas socialmente como instituições de ensino, e que fizeram do sistema de ensino um mercado extremamente lucrativo, um grande negócio movimentador da economia atual.
No mundo pós-moderno, qualquer pessoa agora pode ter seu diploma, desde que possa pagar pela obtenção do mesmo. Tal como destaca com precisão o sublime filósofo e educador Paulo Freire (1921- 1997), no contexto dessa realidade educacional norteada pelo primado economicista: "O dinheiro é a medida de todas as coisas, e o lucro, seu objeto principal"¹.
¹ FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 51.
No atual sistema de ensino, criar dificuldades para o aluno
significa perder dinheiro. Por isso, os alunos deixaram
de conviver com o fantasma da reprovação.
A estrutura educacional brasileira está cada vez mais permissiva; o excesso de flexibilidade nos processos de avaliação do ensino básico favorece o desenvolvimento consentido de analfabetos funcionais, indivíduos incapazes de compreender o sentido de textos intelectualmente mais refinados, assim como de expressarem suas próprias ideias de forma clara e consistente em escritos.
PAULO FREIRE (1921-1997)
Influenciou o movimento chamado Pedagogia
Crítica, cuja didática se baseava na
crença de que o educando assimilaria
o objeto de estudo fazendo uso de uma
prática dialética com a realidade em
contraposição à Educação alienante.
Destacou-se por seu intenso trabalho na
área da educação popular, voltada tanto
para a escolarização como para a formação
da consciência política
Uma vez ingresso nessa instituição mantenedora da ideologia da "vida academicamente fácil", o estudante tende a se considerar para além de qualquer sistema de avaliação, "para além do bem e do mal", pois a própria instituição educacional capitaneia meios para que haja o mínimo índice de reprovação nas disciplinas ofertadas no decorrer da trajetória da graduação. O comunicólogo e escritor brasileiro Felipe Pena formula o valioso juízo crítico acerca das instituições universitárias comercialistas: "Nenhuma dessas recusava clientes, como eram chamados os alunos. Criar dificuldades para o acesso significava perder dinheiro. Qualquer um passava por provas de múltipla escolha, mesmo que errasse todas as questões. Para esses casos raros, havia uma segunda chance, feita rapidamente, antes que o cliente optasse por um concorrente"².
² PENA, Fábrica de diplomas, p. 55.
O filósofo francês Jean-François Lyotard
criticou o sistema comercialista do ensino
e diz que o saber deve estar, necessariamente,
associado à formação do espírito.
O estudante da instituição de ensino "comerciária" é tratado como um cliente de empresa que sempre está com a razão, portanto, ele não pode de modo algum ser reprovado pelo professor, caso contrário o estudante-cliente procurará outra instituição universitária para seguir a sua frágil trajetória acadêmica eivada de resultados intelectuais pífios. O filósofo francês Jean-François Lyotard (1924-1998) é categórico ao criticar o dispositivo comercialista do ensino: "O antigo princípio segundo o qual a aquisição do saber é indissociável da formação (bildung) do espírito, e mesmo da pessoa, cai e cairá cada vez mais em desuso. Essa relação entre fornecedores e usuários do conhecimento e o próprio conhecimento tende e tenderá a assumir a forma que os produtores e os consumidores de mercadorias têm com estas últimas, ou seja, a forma valor. O saber é e será produzido para ser vendido, e ele é e será consumido para ser valorizado numa nova produção: nos dois casos, para ser trocado. Ele deixa de ser para si mesmo seu próprio fim; perde o seu valor de uso"³.
³ LYOTARD, A condição pós-moderna, p. 45.
Quando ocorre uma reprovação, a culpa é do professor, quando o aluno não compreende o conteúdo da disciplina, a culpa é do professor, e assim sucessivamente, circunstância que evidencia o espírito de ressentimento entranhado nessa tipologia estudantil. No sistema comercialista de ensino, o professor é vítima constante de assédio moral e pressões institucionais para que possa satisfazer incondicionalmente os caprichos infantis dos alunos, cada vez mais narcotizados pela infame lógica monetária do "pagou, passou". De acordo com o crítico social estadunidense Christopher Lasch (1932-1994), "a expansão da Educação, que tinha por objetivo tornar as massas mais críticas com relação à autoridade estabelecida, encorajou um certo cinismo diante das declarações oficiais, mas também transformou as massas em ávidas consumidoras da publicidade e da propaganda, que a deixaram em um estado crônico de insatisfação e incerteza"4. O professor se tornou o inimigo das mentalidades obtusas. Cada vez mais são constantes casos em que alunos descarregam as suas frustrações existenciais nos professores, por meio de injúrias ou mesmo agressões físicas, sem que medidas corretivas adequadas sejam adotadas para proporcionar o estabelecimento do respeito para com a classe docente.
LASCH, Refúgio num mundo sem coração, p. 215.
Para Kant, esclarecimento é a saída do homem
de sua menoridade sendo ele o próprio
culpado dessa menoridade, se a causa
dessa condição não se encontrar na
falta de entendimento, mas na falta
de decisão e coragem
O espaço educacional, que deveria promover o progresso do saber e a conscientização cidadã dos indivíduos, se converte em um local de conflito e exclusão. Talvez a crise da organização familiar seja uma das possíveis causas para a degradação do tecido social e sua inerente manifestação na conturbada realidade estudantil da contemporaneidade. Os valores morais e o senso de cidadania devem ser ensinados em especial pela família, cabendo a um estabelecimento de ensino transmitir os conteúdos pedagógicos de cada disciplina e reforçar, mediante a convivência pública cotidiana, a consciência cidadã. A estrutura familiar tradicional não é mais capaz de promover em seus jovens o desenvolvimento rigoroso do respeito, do senso de responsabilidade, da autonomia, postulando-se para os professores tal papel que caberia aos pais, alienados das suas funções basilares. O filósofo francês Gilles Lipovetsky (1944) salienta que "os pais, negligentemente, descarregam a própria culpa nos professores; não fiscalizam o comportamento dos filhos, cada vez mais embrutecidos diante da televisão; e não são mais capazes de incutir respeito"5.
5 LIPOVETSKY, A sociedade pós-moralista, p. 143.
O ritmo vertiginoso do sistema de trabalho em nossa sociedade capitalista e o despreparo familiar impedem que os filhos recebam a educação conveniente em seus lares, de modo que os pais projetam para a instituição escolar a responsabilidade pela educação total dos filhos, imiscuindo-se de seu dever primordial. Nessas condições, cabe ao docente a tarefa de inculcar nos estudantes valores que concerniam aos estamentos familiares. Conforme argumenta a comunicóloga Paula Sibilia, "o desabamento das antigas hierarquias no seio familiar e escolar, essa indistinção gradual entre os papéis de pais e filhos ou professores e alunos, é sem dúvida um aspecto importante na dissolução das etapas da vida organizada pela modernidade"6.
6 SIBILIA, Redes ou paredes, p. 111.
O ensino atual transforma o homem em uma espécie de rebanho de consumidores felizes, à custa da redução intelectual
do estudante, levando-o ao estado de infantilismo narcísico, como uma criança que tudo quer.
Não se trata de defender a retomada do ideário da autoridade absoluta do professor, pois tal dispositivo se caracteriza como supressor de toda capacidade de diálogo entre docente e discente, mas sim de se revalorizar a figura do professor em uma dinâmica social, cultural, política e econômica pautada pela desvalorização de todo pensamento crítico e emancipador.
O clientelismo economicista é, sem dúvida, potencialmente sedutor sobre as individualidades ávidas pelo consumo fácil e todo o prazer efêmero daí resultante. Para a crítica literária argentina Beatriz Sarlo (1942), "quando a administração educacional perde poder e recursos, os grandes ministros da Educação são, na verdade, os gerentes e programadores do mercado, cujos valores não incentivam o surgimento de uma sociedade de cidadãos iguais e sim o de uma rede de consumidores fiéis"7.
7 SARLO, Tempo presente, p. 101-102.

                                              NO BRASIL, mais de 25% da  população entre
 15 e 64 anos são analfabetos funcionais,
              segundo levantamento do Indicador de 
Alfabetismo Funcional (Inaf). Em relação 
aos estudantes de nível superior, o Inaf 
aponta que 38% não dominam habilidades 
básicas de leitura e escrita, o que reflete o 
 expressivo crescimento de universidades 
de baixa qualidade

Contra todas as ideologias comerciárias do ensino, eis a pertinência do pensamento de Karl Marx (1818-1883), cuja perspicácia desagrada as mentalidades obtusas dos compradores de diplomas e sua inerente corrupção educacional: "Sou feio, mas posso comprar para mim a mais bela mulher. Portanto, não sou feio, pois o efeito da fealdade, sua força repelente, é anulado pelo dinheiro"8. Poderíamos reescrever o texto da seguinte maneira: "Sou um analfabeto funcional, intelectualmente inepto, mas posso comprar para mim o mais belo diploma, marcado com o carimbo da lama. Portanto, minha nulidade existencial é anulada pelo poder do dinheiro, logo sou inteligente e um bom administrador da minha vida e dos meus negócios".
8 MARX, Manuscritos econômico-filosóficos, p. 154.
Ao invés de favorecermos o desenvolvimento de uma sociedade democrática regida pela criticidade, transformamos a massa humana em um rebanho de consumidores felizes, pois que plenamente "integrados" aos ditames do sistema capitalista, gerando-se, assim, a redução intelectual do estudante ao estado de infantilismo narcísico, como uma criança que tudo quer instantaneamente. Paula Sibilia aponta que "na oferta educacional contemporânea busca-se oferecer um serviço adequado a cada perfil de público, proporcionando-lhe recursos para que cada um possa triunfar nas árduas disputas de mercado. Isso não é para todos, como a lei, mas tem uma distribuição desigual como o dinheiro: todos os consumidores querem ser distintos e únicos, singulares, capazes de competir com os demais para se destacar com suas vantagens diferenciadas, num mundo globalizado no qual impera um capitalismo cada vez mais jovial, embora também feroz"9. 
9 SIBILIA, Redes ou paredes, p. 132. 

           LEVANTAMENTO realizado em dezembro de 2012 
pelo Ministério da Educação detectou que 27% dos 
cursos superiores do pais tiveram notas 1 e 2, 
em uma escala que vai até cinco. Das 2.136 
instituições avaliadas, nove receberam a nota 1 
e 536, nota 2. Somente 27 alcançaram a 
avaliação máxima em que 15 são 
públicas e 12 particulares


Como o estudante da era pós-moderna não é exigido academicamente por sua instituição, ele acaba por perder qualquer parâmetro avaliativo em sua intelectualidade, enfraquecendo a sua capacidade de pensar, tornando-se um indivíduo alienado em um espaço cultural que deveria justamente promover o progresso da sociedade em suas expressões intelectuais, econômicas e materiais. Eis a derrocada do projeto iluminista e da sua proposta de emancipação do homem perante toda forma de dominação externa como a formulada por Kant (1724-1804): "Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dele não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir- se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere Aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do Esclarecimento [Aufklärung]"10.
10 KANT, "Resposta à pergunta: que é Esclarecimento?" In: Textos seletos, p. 63-64.
O que se exige hoje dos professores é que eles
tenham e exibam, em sala de aula, habilidades histriônicas,
capazes de atraírem as mentalidades dos alunos despreparados,
por meio de estímulos sensoriais e aulas mais "agradáveis"
O ensino universitário privado adepto da lógica comercialista tende, assim, a prejudicar o amadurecimento existencial do estudante, pois este, bestificado pela permissividade dos seus progenitores e preservado pela lógica bonachona do capital, perde todo senso de responsabilidade perante o mundo, tornando-se, então, incapaz de se responsabilizar por seus atos estúpidos. Adorno e Horkheimer, ao descreverem a sociedade administrada capitalista veiculadora da Indústria Cultural, destacam que "quanto mais a realidade social se afastava da consciência cultivada, tanto mais esta se via submetida a um processo de reificação. A Cultura converteu-se totalmente numa mercadoria difundida como uma informação, sem penetrar nos indivíduos dela informados. O pensamento perde o fôlego e limita-se à apreensão do fatual isolado. Rejeitam-se as relações conceituais porque são um esforço incômodo e inútil"11.
11 ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, p. 184.
Percebemos o contínuo empobrecimento da linguagem no processo de formação dos estudantes egressos das instituições acadêmicas regidas pela lógica do capital, de modo que essa massa discente desconhece grande parte do vocabulário da Língua Portuguesa, considerando inclusive uma afronta intelectual quando um professor utiliza um conjunto de palavras alheias ao seu limitado mundo semântico. O ingresso em um curso universitário exige do aluno uma sofisticação de seu vocabulário, mas a sua pobreza expressiva situa-se no âmbito das conversas informais cotidianas. Quem lê pouco, pensa pouco e escreve pouco. Isso não é uma premissa lógica, mas um processo pedagógico natural. Em tempos de niilismo educacional, não é de se estranhar quando um estudante do curso de Letras afirma não gostar de ler; seria o mesmo que um estudante de Filosofia dizer que não gosta de pensar.
Percebemos o desinteresse massificado pela leitura no sistema comerciário de ensino, pois, de modo geral, o alunado anseia apenas pelo saber técnico para se tornar um profissional competente, bem situado no mercado de trabalho, e de modo algum um indivíduo crítico, pensante, que reflita sobre sua própria atividade profissional. Conforme indaga o filósofo húngaro István Mészáros (1930), "será o conhecimento o elemento necessário para transformar em realidade o ideal da emancipação humana, em conjunto com uma firme determinação e dedicação dos indivíduos para alcançar, de maneira bem-sucedida, a auto emancipação da humanidade, apesar de todas as adversidades, ou será, pelo contrário, a adoção pelos indivíduos, em particular, de modos de comportamento dos objetivos reificados do capital?"12.
12 MÉSZÁROS, A educação para além do capital, p. 47-48.
A espetacularização da sociedade requer professores com habilidades histriônicas, capazes de seduzirem mentalidades embotadas pela série de estímulos sensórios com aulas consideradas mais agradáveis, isto é, mais dinâmicas conforme a lógica vertiginosa do tempo corrido da contemporaneidade. O filósofo francês Guy Debord (1931-1994) afirma que "a consciência espectadora, prisioneira de um universo achatado, limitado pela tela do espetáculo para trás da qual sua própria vida foi deportada, só conhece os interlocutores fictícios que a entretêm unicamente com sua mercadoria e com a política de sua mercadoria"13.
13 DEBORD, A sociedade do espetáculo, p.140.
O professor agora se encontra na necessidade de competir pela atenção do aluno enfocado em seu celular e outros apetrechos eletrônicos. O imaginário social infelizmente reforça tal disposição, exigindo do professor a capacidade de se metamorfosear em um animador de auditório, com a única diferença que, ao invés de haver a distribuição de prêmios, se anseia pela distribuição indiscriminada de pontos para satisfação dos alunos. Para Gilles Lipovetsky, como o espaço público se esvazia emocionalmente por excesso de informações, de solicitações e de estímulos, o eu perde suas referências e sua unidade por excesso de atenção; o eu se tornou um conjunto "imbecil"14.
14 LIPOVETSKY, A Era do Vazio, p. 37.
Uma possível solução para a ruptura radical com esse modelo educacional nitidamente exploratório da competência profissional do professor seria a criação de cooperativas educacionais, nas quais todos os docentes possuiriam estatuto profissional isonômico na divisão dos lucros advindos pela transmissão do saber aos discentes. O grande empecilho para a emancipação plena do professor da rede privada na sociedade capitalista é, justamente, o fato de não possuir os meios de produção, isto é, a estrutura física da instituição pedagógica; todavia, por meio da conscientização política da classe docente, da participação em uma rede colaborativa, esse problema poderia ser razoavelmente sanado.
O professor, hoje, precisa competir pela atenção de seus
ouvintes com o telefone celular e outros apetrechos eletrônicos,
o que o obriga a ser um "animador de auditório"
O objetivo central da luta contra a sociedade mercantilista e sua subsequente alienação cultural em nome da massificação totalitária da vida humana é a emancipação plena da Educação desses ditames vulgarmente comercialistas: "Romper com a lógica do capital na área da Educação equivale, portanto, a substituir as formas onipresentes e profundamente enraizadas de internalização mistificadora por uma alternativa concreta abrangente".15 Por conseguinte, a Educação, que poderia ser um instrumento essencial para a mudança da estrutura excludente do regime capitalista, torna-se, justamente, instrumento dos seus mais violentos processos de estigmatização, ao fornecer os "conhecimentos" e o pessoal necessário para a manutenção da maquinaria produtiva em expansão desse sistema, gerando, ainda, um sistema ideológico que legitima os interesses dominantes das grandes corporações empresariais.
15 MÉSZÁROS, A educação para além do capital, p. 47.
Na dimensão opressora do comercialismo capitalista, a Educação se torna uma mercadoria de grande rentabilidade, um filão efervescente cuja exploração comercial encontra-se certamente no seu apogeu. Decorre daí a crise do sistema público de ensino, pressionado pelas demandas pecuniárias dos especuladores financeiros e dos empresários educacionais que de modo algum podem aceitar melhorias qualitativas na dimensão do ensino público: a degradação deste é diretamente proporcional ao luxo das instituições educacionais privadas; tanto pior, enquanto os empresários do ensino continuarem ditando as suas regras autoritárias nos bastidores da Política, essa situação de miséria pedagógica certamente permanecerá incólume. Não podemos deixar que a flama do saber se converta na lama da ignorância.
A culpa é de quem?
Na sociedade contemporânea percebe-se a tendência da família fragilizada em suas bases morais transferir a responsabilidade formativa dos jovens para a escola e seus educadores, que ficam assim sobrecarregados em suas funções pedagógicas. Os jovens, cada vez mais infantilizados pela sociedade de consumo, consideram o espaço educacional apenas como um local de lazer, um ponto de encontro social; não se realizam existencialmente em seus estudos cotidianos, considerando a vida estudantil um enfado insuportável. A transformação do estudante em um consumidor que deve ser satisfeito como o cliente preferencial solapa a respeitabilidade pelo professor, imputado como o culpado por todo fracasso pedagógico do estudante desprovido de qualquer senso crítico em sua existência medíocre. De onde a juventude alienada reproduz esse comportamento clientelista? Certamente da sua própria vida domiciliar, graças a inépcia educacional de pais autoritariamente frouxos, preocupados acima de tudo com a manutenção de seu status quo e suas viagens de fim de ano como autogratificação por sua dedicação exaustiva ao mundo do trabalho. 

REFERÊNCIAS
ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo - Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Trad. de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
KANT, I. "Resposta à pergunta: que é Esclarecimento?" In: Textos seletos. Trad. de Raimundo Vier e Floriano de Souza Fernandes, p. 63-71, Petrópolis: Vozes, 2005.
LASCH, C. Refúgio num mundo sem coração. A família: santuário ou instituição sitiada? Trad. de Ítalo Tronca e Lúcia Szmrecsanyi. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
LIPOVETSKY, G. A Era do Vazio - Ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Trad. de Theresinha Monteiro Deutsch. Barueri: Manole, 2005.
___________. A sociedade pós-moralista. O crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos. Trad. de Armando Braio Ara. Barueri: Manole, 2005.
LYOTARD, J.-F. A condição pós-moderna. Trad. de Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.
MARX, K. Manuscritos econômicofilosóficos. Trad. de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004.
MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital. Trad. de Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2008.
PENA, F. Fábrica de diplomas. Rio de Janeiro: Record, 2011.
SARLO, B. Tempo presente: notas sobre a mudança de uma cultura. Trad. de Luís Carlos Cabral. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
SIBILIA, P. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

sábado, 13 de julho de 2013

¨¨¨Landisvalth Blog: Estudantes de Poço Verde visitaram Canudos

¨¨¨Landisvalth Blog: Estudantes de Poço Verde visitaram Canudos: Estudantes do CEPJO visitaram as ruínas da 2ª Canudos O Colégio Estadual Professor João de Oliveira, da cidade de Poço Verde, Sergipe...

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Holocausto brasileiro: 60 mil morreram em manicômio de Minas Gerais

Por Renan Truffi – do portal iG.  
Livro conta história de hospício em Barbacena que arrecadou R$ 600 mil com venda de corpos
“Milhares de mulheres e homens sujos, de cabelos desgrenhados e corpos esquálidos cercaram os jornalistas. (...) Os homens vestiam uniformes esfarrapados, tinham as cabeças raspadas e pés descalços. Muitos, porém, estavam nus. Luiz Alfredo viu um deles se agachar e beber água do esgoto que jorrava sobre o pátio. Nas banheiras coletivas havia fezes e urina no lugar de água. Ainda no pátio, ele presenciou o momento em que carnes eram cortadas no chão. O cheiro era detestável, assim como o ambiente, pois os urubus espreitavam a todo instante”.
A situação acima foi presenciada pelo fotógrafo Luiz Alfredo da extinta revista O Cruzeiro em 1961 e está descrita no livro-reportagem Holocausto Brasileiro, da editora Geração Editorial, que acaba de chegar às livrarias de todo o País. Ainda que tenha semelhanças com um campo de concentração nazista, o caso aconteceu em um manicômio na cidade de Barbacena, Minas Gerais, onde ocorreu um genocídio de pelo menos 60 mil pessoas entre 1903 e 1980.
Apesar de ser uma história recente, o fato de um episódio tão macabro permanecer desconhecido pela maioria dos brasileiros inspirou a jornalista Daniela Arbex. “Eu me perguntei: como minha geração não sabe nada sobre isso?”. A obra conta a história do maior hospício do Brasil, que ficou conhecido como Colônia e leva este nome por ter abrigado atos de crueldade parecidos com os que aconteceram na Alemanha nazista, durante a Segunda Guerra Mundial.
 “Dei esse nome primeiro porque foi um extermínio em massa. Depois porque os pacientes também eram enviados em vagões de carga (ao manicômio). Quando eles chegavam, os homens tinham a cabeça raspada, eram despidos e depois uniformizados”, explica a autora. Daniela não foi a única a comparar Colônia ao holocausto. No auge dos fatos, em 1979, o psiquiatra italiano Franco Basaglia visitou o hospício com a intenção de tentar reverter o que ocorria no local. “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em nenhum lugar do mundo presenciei uma tragédia como essa”, disse na ocasião.
A Colônia foi inaugurada em 1903 e continua aberta até hoje, mas o período de maior barbárie aconteceu entre 1930 e 1980, quando pessoas eram internadas sem terem sintomas de loucura ou insanidade. Segundo o livro-reportagem, cerca de 70% das pessoas não tinham diagnóstico de doença mental. “Foi o momento mais dramático. A partir de 1930, os critérios médicos desapareceram. Em 1969, com a ditadura, o caso foi blindado. Não gosto de chamar assim, mas (entre 1930 e 1980) foi um período negro. Foi criado para atender pessoas com deficiência mental, mas acabou sendo usado para colocar pessoas indesejadas socialmente, como gays, negros, prostitutas, alcoólatras”, contou.
Internação e sobrevivência
A autora: Daniela Arbex
Daniela contou ainda que a ordem para internação das pessoas na Colônia vinha dos mais influentes da sociedade na época. “Quem decidia é quem tinha mais poder. Teve pessoas que foram enviadas pela canetada de delegados, coronéis, maridos que queriam se livrar da mulher para viver com a amante. Não tinha critério médico nenhum. Tem documento que mostra que o motivo da internação de uma menina de 23 anos foi tristeza”, criticou.
Ao chegarem ao manicômio, os internados tinham uma rotina “desumana”. Eles dormiam juntos em salas grandes sem cama. Todos tinham que se deitar sobre o chão do cômodo, que era coberto apenas por capim. Acordavam por volta das 5h da manhã e eram enviados para os pátios, onde ficavam até 19h, todos os dias. “Barbacena é uma cidade muita fria. Até hoje tem temperatura muito baixa para os padrões brasileiros. Pessoas eram mantidas nuas nos pátios em total ociosidade. Pensa bem que condição sub-humana”, disse a jornalista.

Além disso, a alimentação na Colônia era precária, o que causou a desnutrição e, consequentemente, o desenvolvimento de doenças em vários dos “pacientes”. “Eles tinham uma alimentação muito pobre, de pouca qualidade nutritiva. Muitas pessoas passavam fome. Tem histórias de gente que em momento de desespero comeu ratos ou pombas vivas. (...) As pessoas acabavam tendo sede e bebiam urina ou esgoto porque tinha fossas no pátio. Não tinha nenhuma privacidade. Até 1979 era assim, faziam xixi e coco na frente de todo mundo", explicou.
O fato dos homens, mulheres e até crianças ficarem pelados o tempo todo criava um clima de promiscuidade no manicômio. Há relatos de mulheres que foram estupradas por funcionário. “Consegui depoimentos nesse sentido de (estupro e abuso sexual), mas não consegui provar. Tem um caso de uma mulher que disse ter engravidado de um funcionário. Certo é que havia uma promiscuidade incrível. As pessoas eram mantidas nuas, dormindo juntas nessas condições. Crianças eram mantidas no meio dos adultos”, lamentou.
Além das condições insalubres, o hospício chegou a ter 5.000 pessoas ao mesmo tempo, enquanto a capacidade original era para 200 pacientes. Nesses períodos de maior lotação, 16 pessoas morriam todos os dias. “Não era uma coisa determinada, não existia uma ordem (para matar). As coisas foram se banalizando. Um funcionário via que outro fazia tal coisa com o paciente e repetia. As pessoas deixaram as coisas acontecerem. Não tinha essa coisa de vamos fazer com essa finalidade. Era exatamente por omissão”, comentou.
Venda de corpos
Livro Holocausto Brasileiro conta história do genocídio
de 60 mil pessoas em hospício de MG.

Foto: Divulgação/Luiz Alfredo/Revista O Cruzeiro
Mas a morte dava lucro. A autora do livro conta que encontrou registros de venda de 1.853 corpos, entre 1969 e 1980, para faculdades de medicina. “O que a gente não sabia e conseguimos descobrir, com a ajuda da coordenação do Museu da Loucura, foi que 1.853 corpos foram vendidos para 17 faculdades de medicina do País. O preço médio era de 50 cruzeiros. Dá um total de R$ 600 mil reais, se atualizarmos a moeda. Tem documento da venda de corpos. De janeiro a junho de um determinado ano, por exemplo, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) recebeu 67 peças, como eles mencionavam os corpos”, afirma.
Depois de algum tempo, o mercado deixou de comprar tantos cadáveres. Os funcionários passaram, então, a decompor os corpos dos mortos com ácido no pátio da Colônia, diante dos próprios pacientes, para comercializar também as ossadas.
O caos estabelecido na Colônia foi descoberto pela revista O Cruzeiro, que publicou em 1961 uma reportagem de denúncia de José Franco e Luiz Alfredo, entrevistado por Daniela Arbex no livro. A autora conta que, na época, houve comoção em torno do caso, mas as condições continuaram as mesmas no hospício. “Na época, o (ex-presidente) Jânio Quadros estava no poder. Ele falou que ia mandar dinheiro para a Colônia, falaram que ia fazer acontecer e nada. Não foi feito nenhum tipo de intervenção que fizessem os absurdos cessarem. De 1961 até 1979, a situação continuou tão grave quanto”, explica.

As “atrocidades” no hospício só começaram a diminuir quando a reforma psiquiátrica ganhou fôlego em Minas Gerais, em 1979. Hoje, o manicômio é mantido pela Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG) e conta com 160 pacientes do período em que o local parecia mais um “campo de concentração”. Ninguém nunca foi punido pelo genocídio.