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sábado, 22 de setembro de 2012

Pressões demográficas redesenham a arena política mundial


O crescimento populacional nunca foi tão desigual, e as discrepâncias entre os perfis demográficos de países, grupos étnicos, religiosos e econômicos exercerão cada vez mais influência sobre as disputas pelo poder
Cecília Araújo – de Veja.com
Caos no trânsito em Lagos -  Nigéria.
Em uma de suas assombrosas previsões, o francês Alexis de Toqueville cravou em 1835 que Estados Unidos e Rússia disputariam o futuro do planeta. A célebre passagem encerra o primeiro volume de A Democracia na América: "Existem hoje, sobre a terra, dois grandes povos que, tendo partido de pontos diferentes, parecem adiantar-se para o mesmo fim: são os russos e os anglo-americanos (...) O americano tem por principal meio de ação a liberdade; o russo, a servidão. (...) Cada um deles parece convocado, por um desígnio secreto da providência, a deter nas mãos, um dia, os destinos de metade do mundo".
Notas de rodapé mostram que o historiador se valeu de numerosos dados demográficos para antever a polarização que marcou o planeta no século XX: a população das grandes e pequenas cidades, o número de trabalhadores rurais, a proporção de escravos, índios, imigrantes, os grupos religiosos etc. Toqueville considerava que os americanos e os russos estavam então em franco crescimento demográfico, vindo a ocupar "amplos espaços vazios", ao contrário dos europeus, "que parecem ter chegado mais ou menos aos limites traçados pela natureza".
A análise certeira de Toqueville antecipa em quase dois séculos um campo hoje emergente das ciências sociais, a demografia política. Seu objetivo é vencer o fosso que separa a ciência política da montanha de dados populacionais, cujo tratamento matemático é cada vez mais sofisticado. Quando bem-sucedido, o esforço permite traçar cenários políticos com razoável grau de confiança. Que o digam os estrategistas de campanha, sempre prontos a moldar o discurso dos candidatos em função de eleitorados emergentes, como se vê tanto na disputa pela Casa Branca como na corrida pela prefeitura de São Paulo.
Imigrantes chineses nos Estados Unidos
Os recados da demografia já estão no radar das campanhas mas ainda custam a chegar à gestão pública. "Não conheço uma Secretaria de Educação no Brasil que tenha um especialista em demografia, que saiba quantas crianças vão nascer nos próximos anos e, portanto, quantas escolas precisam ser abertas ou fechadas", exemplificou a VEJA o educador João Batista Araujo e Oliveira. É o que lamenta Jack Goldstone, professor da Universidade George Mason, em Virgínia (EUA). Daí o livro Demografia política: como as mudanças populacionais estão remodelando questões de segurança internacional e política nacional (em tradução livre), que editou em companhia de Eric Kaufmann, da Universidade de Londres, e Momica Duffy Toft, da Harvard. Lançada em junho de 2012, a obra alerta para as tendências que vão redesenhar o mundo até 2050.
Essas mudanças já estão em curso e em boa medida não têm precedente histórico. Isso porque o crescimento populacional nunca foi tão desigual. Goldstone resume: o mundo de amanhã não será simplesmente o mundo de hoje, só que com mais gente. As discrepâncias entre os perfis demográficos tanto de países como, dentro de suas fronteiras, dos grupos étnicos, religiosos e econômicos exercerão enorme pressão sobre a arena política, deem-se as disputas nas urnas, nos foros diplomáticos ou nos campos de batalha.
Bomba demográfica - Para sucessivos governos israelenses, desde o primeiro gabinete do premiê David Ben-Gurion, demografia é uma questão existencial. Yasser Arafat dizia que a altíssima fertilidade das mulheres palestinas (6,8 filhos em média na Faixa de Gaza) era a 'bomba biológica' que daria a 'vitória final' sobre os judeus. Por muito tempo, Israel compensou a diferença das taxas de fertilidade com políticas de estímulo a imigração. Mais recentemente, entrou no radar dos analistas uma nova força demográfica: os índices de natalidade de judeus ultraortodoxos (8 filhos por mulher), ainda mais altos que os de palestinos. Até 2025, 12% dos israelenses serão judeus ultraordoxos e pode-se prever que esta parcela da população passará a exigir crescente representação política.
A relação entre fervor religioso e fecundidade é conhecida dos demógrafos. As principais religiões são todas entusiastas do casamento e da procriação, com censuras ao divórcio, aborto e homossexualismo. Famílias muito religiosas são comumente mais numerosas que as seculares, o que vale tanto para fundamentalistas islâmicos, como judeus ultraordoxos e cristãos conservadores americanos. Esta diferença explica, por exemplo, a recente inversão no Líbano, onde muçulmanos passaram cristãos e hoje são maioria. Em 1971, um raro estudo sobre fertilidade das mulheres libanesas encontrou os seguintes números: sete filhos em média para muçulmanos xiitas, quase seis para sunitas, cinco para famílias drusas e entre quatro e cinco para cristãos.
Distrito financeiro de Pudong em Xangai, China
A cartada evangélica - O Brasil também caminha para uma inversão de seu perfil religioso, e a razão é a emergência da população evangélica, em particular das correntes pentecostais e neopentecostais. Em 1970, 91,8% dos brasileiros eram católicos. Em 2010, eram 64,6%. Mantida a tendência, evangélicos e católicos se igualarão em no máximo 30 anos, mas desde já o crescente peso do eleitorado evangélico ganha o primeiro plano na disputa eleitoral.
Nos Estados Unidos, a mobilização do eleitorado evangélico é uma cartada eleitoral dos anos 1970 e já não tem a mesma força em 2012: o perfil demográfico americano está mudando, e até 2050 o país de protestantes anglo-saxões será composto majoritariamente por hispânicos, asiáticos e negros. Este tendência é interpretada como um trunfo de longo prazo dos democratas, com quem as minorias, historicamente, têm maior afinidade.
Outono europeu - O crescimento acelerado das minorias americanas é o que tem mantido o perfil demográfico relativamente saudável do país. Das grandes potências, os Estados Unidos são a única onde a fertilidade (2,07 filhos em média) é próxima à taxa de reposição (2,1), que garante uma população estável. A maioria dos países europeus e muitos asiáticos convivem desde os anos 1970 com taxas bem inferiores e atravessam agora a uma espécie de outono demográfico, marcado pelo super-envelhecimento, o encolhimento da força de trabalho e, eventualmente, redução populacional.
Na Alemanha e Japão, a média de filhos por mulher é pouco maior que 1,3, e suas populações já estão diminuindo. É o último estágio da chamada transição demográfica. Este fenômeno consiste na passagem de uma população com alta taxa de fecundidade e baixa expectativa de vida para a situação oposta. Evidentemente, os países não experimentam ao mesmo tempo esta transição, daí as pressões políticas que a demografia permite antever.
O primeiro estágio da transição demográfica consiste na queda da mortalidade infantil e aumento da expectativa de vida, indicadores que os mais básicos cuidados com saúde, saneamento e alimentação são capazes de revolucionar. O resultado imediato é um vigoroso aumento populacional. Muitos países empacam nesta primeira fase (atualmente são 45, a maioria na África e Oriente Médio). A Etiópia é um bom exemplo: de 2000 a 2010, a expectativa de vida aumentou de 51 para 56 anos, mas a fertilidade se manteve alta (acima de 6 filhos por mulher). Em 1995, a Etiópia tinha uma população equivalente à da França (57 milhões). Tudo o mais constante, em 2035 a França terá 71 milhões de habitantes, e a Etiópia, mais que o dobro, 154 milhões.
"É uma novidade na história da demografia mundial: grande parte do crescimento populacional ocorre em países pobres. Se há 50 anos a população da Europa era duas vezes a da África, daqui a 50 anos a população da África será três vezes maior do que a da Europa", diz Goldstone. "Até 2050, as diferenças entre os países pobres e ricos serão máximas", acrescenta Kaufmann.
Oportunidade única - Em um segundo momento da transição demográfica, a taxa de natalidade começa a cair, em função de fatores que se ligam à escolaridade, urbanização, crescimento econômico, políticas de saúde pública etc. O resultado é o aumento da população adulta – economicamente ativa –, ainda desobrigada do ônus de sustentar um número muito grande de idosos ou de crianças. É uma chance rara e única de desenvolvimento, que todos países ricos souberam aproveitar. Esta janela de oportunidade está atualmente aberta a alguns dos países emergentes, como Turquia, Irã, Vietnã, Indonésia, China, Indonésia e, notadamente, o Brasil. Em 1965, havia noventa brasileiros dependentes para cada 100 em idade economicamente ativa. Hoje, essa relação é de 45 para 100.
"Países que tiveram uma queda recente na taxa de fecundidade têm um futuro promissor pela frente. O número de trabalhadores está crescendo muito, enquanto o número de crianças dependentes tem um crescimento mais ameno", diz Goldstone. "Mas para tirar proveito dessas oportunidades, é preciso se concentrar em algumas medidas políticas e econômicas para melhorar as condições dos jovens, incluindo investimento em educação e criação de empregos."
Este bônus demográfico tem prazo para acabar. Até meados do século, o contínuo envelhecimento da população fecha esta janela de oportunidade. E taxas de natalidade persistentemente baixas lançam o país rumo à etapa final da transição demográfica.
Campanhas para acelerar os primeiros estágios da transição já se mostraram eficientes, como mostram a China e, principalmente, a Coreia do Sul. Nos anos 1970, Seul divulgava os seguintes lemas: "pare em dois (filhos), independente do sexo " e "uma garota bem criada vale por dois garotos". Nos anos 1980, a chave era "dois (filhos) é demais". Hoje em dia o país tem o perfil demográfico que os europeus levaram séculos para alcançar – e as mesmas preocupações.
Já as tentativas de reverter a transição têm se mostrado em geral ineficazes e não raro ridículas, como o "dia do sexo". Instituída em 2007 na província russa de Ulyanovsk, a campanha premiava famílias com um veículo utilitário por cada bebê nascido nove meses depois do "dia do sexo".
Paz geriátrica - Demógrafos tratam esta transição como uma fatalidade – efeito do próprio desenvolvimento humano. Disso decorre, como exemplo mais óbvio, que os custos com aposentadorias serão crescentes (mais de um quarto do PIB europeu até 2040). E que será cada vez mais comum o modelo chinês conhecido como 4-2-1, resultado da política de filho único com o aumento da longevidade: um filho sustenta o pai, a mãe e os quatro avós. Mas há também um efeito até pouco tempo atrás inesperado: sociedades com mais adultos e velhos tendem a ser mais pacíficas.
Mulheres idosas empurram carrinhos de compras em Berlim, Alemanha
Estudando a frequência de golpes, guerras civis e confrontos entre países vizinhos, demógrafos encontraram a seguinte relação: onde a faixa etária predominante é jovem, são maiores as chances de conflito armado; onde predominam os adultos e os idosos, são maiores as chances de uma democracia liberal. A explicação para isso é que gangues, milícias e revoltas populares têm um custo de mobilização muito mais baixo onde há jovens em excesso e empregos em escassez. As evidências desta hipótese podem ser encontradas em diversas épocas e continentes: nos Bálcãs, na América Latina e no Sudeste Asiático de décadas recentes e também no Oriente Médio e norte da África dos dias de hoje. Também esta oportunidade de "paz geriátrica" exigirá maior atenção aos recados da demografia política.
Boom africano
A África será o novo gigante em população. Até 2020, Etiópia terá mais habitantes do que a Rússia. Em 2050, o continente será mais populoso do que Índia e China juntas. Muitas cidades africanas terão dezenas de milhares de habitantes nas próximas décadas. A transformação será muito mais intensa e acelerada do que aconteceu na Europa no século XVIII, quando o saneamento e tecnologia médica contribuíram para reduzir a mortalidade infantil e provocar uma explosão populacional na Europa. Até 1950, a população europeia expandiu de 3 a 5 vezes. Agora, os países em desenvolvimento - beneficiados com a mais recente tecnologia médica - podem esperar uma expansão de 8 a 24 vezes. O demógrafo Jack Goldstone sugere que os países mais ricos olhem para o crescimento em população dos mais pobres menos como um problema em potencial e mais como uma boa oportunidade de negócios. O especialista lembra que, nos anos 1980 e 1990, a entrada de 1 bilhão de trabalhadores da Índia e da China aumentou de forma significativa a produção da economia global. Da mesma forma, a entrada nas próximas décadas de bilhões de pessoas no mercado, especialmente vindas da África, pode trazer um impacto positivo para o mundo. “Mas, para isso, é preciso que os africanos tenham acesso à educação e empregos. Se os países mais ricos investirem na África, para aprimorar seus trabalhadores, podem ter uma boa surpresa no futuro, com benefícios para todos. Se falharem nessa ajuda, a consequência também será global: mais disputas e conflitos das mais diversas origens”, diz.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

‘O Palhaço’ concorre à vaga de melhor filme estrangeiro no Oscar 2013


                         Pedro Proença – Estadão.com.br
(Longa de Selton Mello pode levar o Brasil de volta ao mais famoso tapete vermelho. Foto: Divulgação)
A última vez que uma produção nacional concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro foi com Central do Brasil, em 1999. Em 24 fevereiro de 2013, 14 anos depois, o Brasil poderá ser representado na premiação por O Palhaço. O filme foi anunciado como representante do País na seleção que definirá os indicados ao prêmio de Melhor Filme Estrangeiro. A escolha do longa foi divulgada pela Secretaria do Audiovisual, vinculada ao Ministério da Cultura, nesta quinta-feira, 20, no Rio de Janeiro.
“Creio que a maior inovação que fazemos com a escolha do Palhaço reside no seu potencial. Esta indicação tem que ser vista como um prêmio também, é um aval de que um filme pode ir além. Espero que isso seja positivo para uma produção que já é sucesso”, afirmou a secretária do Audiovisual do MinC, Ana Paula Dourado Santana.
O longa venceu 15 produções inscritos junto à pasta, como Heleno, Capitães da Areia, Elvis & Madona, À Beira do Caminho, Corações Sujos e Xingu.
Com direção e atuação de Selton Mello, o filme conta a história do palhaço Benjamin, que atua com seu pai, Valdemar (vivido por Paulo José), em apresentações do Circo Esperança pelo interior de Minas Gerais. Eles atuam no picadeiro como Pangaré e Puro Sangue. Benjamin se questiona se quer mesmo continuar a atuar como palhaço ou largar a instável vida do circo e trilhar novos caminhos para a sua vida. Selton Mello interpreta um personagem que, embora faça o público rir constantemente, é triste e carrega certa melancolia em sua alma.
O personagem de Selton Mello, que sequer tem uma carteira de identidade, tem a incumbência de cuidar da parte burocrática do circo (ou seja: lidar com diversas dívidas). O filme, ao mesmo tempo, é capaz de arrancar risos e lágrimas do público. Essa versatilidade rendeu ao longa um público de 1, 2 milhão de espectadores e a quantia de R$ 11.901.420,05 em 33 semanas de exibição (no período de 28/10/2011 a 06/09/2012), de acordo com dados da Ancine.
Além de Central do Brasil, os únicos longas nacionais até hoje que concorreram à estatueta foram O Que É Isso, Companheiro?, em 1998; O Quatrilho, em 1996; e O Pagador de Promessas, em 1963. Os filmes não levaram o prêmio em nenhuma das ocasiões. A lista dos indicados desta e de todas as outras categorias do Oscar será divulgada em 10 de janeiro.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Novo filme de Marcelo Gomes é a principal atração do Festival de Brasília


FERNANDA EZABELLA – da FOLHA DE SÃO PAULO
Uma cena de orgia numa praia ensolarada abre o novo filme do diretor brasileiro Marcelo Gomes, "Era uma Vez Eu, Verônica", sobre a crise existencial de uma médica recém-formada, no caos urbano de Recife.
A atriz Hermila Guedes em cena de "Era Uma Vez Eu, Verônica", de Marcelo Gomes
O longa-metragem é estrelado por Hermila Guedes ("O Céu de Suely") e foi exibido pela primeira vez no Festival de Toronto, numa sala lotada, no sábado à noite. Na próxima sexta-feira, o trabalho concorre ao prêmio principal do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, sendo exibido para o júri no teatro Claudio Santoro, principal sala do evento. O filme fará sua estreia em São Paulo na Mostra Internacional de Cinema, que começa em 19 de outubro.
 Verônica é uma jovem que mora com o pai doente em um apartamento perto da praia e começa a atender pacientes com problemas mentais no hospital público. No tempo livre, ela sai com as amigas e faz sexo com Gustavo (João Miguel). "Queria desenvolver um personagem extremamente comum, com dúvidas sobre a vida, sobre o amor, sobre o futuro, sobre o sexo", disse Gomes à Folha. O cineasta gosta de citar como referência para Verônica personagens clássicos do cinema como a protagonista de "Mônica e o Desejo" (1953), de Ingmar Bergman. "Acho que a Verônica é a prima da Mônica."
FILME TERAPÊUTICO
A ideia para o projeto nasceu de um conto que ele escreveu quando fazia seu primeiro longa, "Cinema, Aspirinas e Urubus" (2005), no qual Hermila faz uma ponta. Naquela época, cismou que um dia faria um filme com a atriz no papel principal. Para desenvolver o roteiro, o diretor de 48 anos entrevistou 20 mulheres com o perfil parecido ao de Verônica para entender as angústias dos jovens de hoje. "Eram quase como sessões de psicanálise. Acho que baixou um Eduardo Coutinho em mim e elas me diziam coisas incríveis, sobre o problema do afeto, da violência nas cidades, da competição profissional e da pressão para dar certo", revela Gomes. Para filmar as cenas de sexo na praia e entre os dois personagens, o diretor fez exercícios com o elenco e até tirou a própria roupa para todos ficarem à vontade. "Queria que as cenas de sexo fossem extremamente naturalistas, porque o filme todo tem este tom", explica ele. "O Brasil tem várias contradições. Uma delas é questão do nu. Você chega na praia e está todo mundo num biquíni sumário [...], e se uma mulher faz um topless, acabou, vira um escândalo." O próximo projeto do diretor será um "docudrama" em parceria com o artista plástico e cineasta Cao Guimarães. "O Homem das Multidões" quer discutir o processo de fazer cinema, incorporando todos os passos, como captação de dinheiro, cada vez mais difícil na indústria brasileira.
CINEMA CARO
"O Brasil virou um país caríssimo. As equipes ficaram menores, e a gente tem de filmar em menos tempo", reclama Marcelo Gomes, acrescentando que "Era Uma Vez Eu, Verônica" teve um custo muito mais alto do que seu anterior, "Cinema, Aspirinas e Urubus", um filme de época no sertão nordestino. Foi com "Cinema...", exibido em Cannes e premiado em vários festivais nacionais, que Gomes ganhou projeção nacional. A boa reputação na crítica se consolidou com "Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo", em parceria com Karim Aïnouz. Depois do trabalho com Cao Guimarães, ele pretende filmar a adaptação do romance "Relato de um Certo Oriente", de Milton Hatoum, que se passa na Amazônia. "Está mais difícil fazer cinema porque a competitividade é maior e, portanto, tem menos dinheiro. É muito bacana que existe uma pluralidade, uma produção muito maior. Mas ficou mais caro."

sábado, 15 de setembro de 2012

12 contos de Machado de Assis analisados resumidamente


                                  Landisvalth Lima
1 - A Igreja do Diabo

Machado de Assis
O conto está dividido em 4 capítulos e narra a idéia do Diabo de construir uma igreja. Percebeu o adversário do Divino que as pessoas freqüentavam a igreja de Deus pregavam bondade, igualdade, fraternidade, amor ao próximo, mas, no comportamento cotidiânico, faziam exatamente o contrário. Era hora, pois, de fazer uma igreja que pregasse o que os homens de fato faziam. Assim procedeu, comunicando ao Senhor sua decisão. A igreja prosperou. Adeptos e seguidores lotavam suas dependências. “Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova.”. Um tempo depois, o Diabo percebeu que muitos começavam a praticar antigas virtudes. “Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros”. O Diabo ficou espantado e indignado. Foi aos céus para falar com Deus e buscar uma explicação para o fenômeno. Deus lhe disse: “— Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.”.

2 – Cantiga de esponsais

O nome é Romão Pires, o mestre Romão. Músico, 60 anos. Presença quase que obrigatória em festas, batizados, espetáculos. Era o maestro que regia todas as festas. Mas por que Romão Pires era triste? Simples.” Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel. Esta era a causa única da tristeza de mestre Romão.” Queria produzir algo de seu, para ficar na história, para ser executado por outros maestros. Bem que tentou. Chegou inclusive a iniciar alguma coisa, mas nada definitivo. Um dia o mestre adoeceu e desejou produzir sua sonata.” O princípio do canto rematava em um certo lá; este lá, que lhe caía bem no lugar, era a nota derradeiramente escrita. Mestre Romão ordenou que lhe levassem o cravo para a sala do fundo, que dava para o quintal: era-lhe preciso ar. Pela janela viu na janela dos fundos de outra casa dois casadinhos de oito dias, debruçados, com os braços por cima dos ombros, e duas mãos presas. Mestre Romão sorriu com tristeza.
— Aqueles chegam, disse ele, eu saio. Comporei ao menos este canto que eles poderão tocar...
Impossível. Nenhuma inspiração.” Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a moça embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo lá trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca. O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou.
A lição do conto é a verdade do fato de haver pessoas que nascem apenas para reproduzir; algumas produzem, criam.

3 - Marcha fúnebre

O deputado Cordovil recebe a noticia da morte de um inimigo político seu. Nada de alegria ou alívio. Ao contrário, ao saber do sofrimento, da morte lenta, dolorosa, parecia até perdoar o inimigo morto.Um dia, ao voltar de um baile, Cordovil enfrenta novamente a morte. Um homem havia morrido na estrada de repente.Morte rápida, sem sofrimentos. O deputado passou a imaginar de como morreria e a imaginar as diversas situações possíveis de sua morte.”Então a morte, que ele imaginara pudesse ter sido no baile, antes de sair, ou no dia seguinte em plena sessão da Câmara, apareceu ali mesmo no carro. Supôs ele que, ao abrirem‑lhe a portinhola, dessem com o seu cadáver. Sairia assim de urna noite ruidosa para outra pacífica, sem conversas, nem danças, nem encontros, sem espécie alguma de luta ou resistência.” E de tanto pensar na morte, chegou a imaginar que amanheceria morto. O sonho não se fez. “Quando veio a falecer, muitos anos depois, pediu e teve a morte, não súbita, mas vagarosa, a morte de um vinho filtrado, que sai impuro de uma garrafa para entrar purificado em outra; a borra iria  para o cemitério. Agora é que lhe via a filosofia; em ambas as garrafas era sempre o vinho que ia ficando, até passar inteiro e pingado para a segunda. Morte súbita não acabava de entender o que era.

4 - Miss Dollar

É o único conto romântico do livro e narra a história de amor entre Mendonça e Margarida. O conto está dividido em 8 capítulos e é a cadelinha Miss Dollar o motivo principal da união dos protagonistas. “Mendonça era um homem como os outros; gostava de cães como outros gostam de flores. Os cães eram as suas rosas e violetas; cultivava-os com o mesmíssimo esmero.”. Margarida era “uma moça que representava vinte e oito anos, no pleno desenvolvimento da sua beleza, uma dessas mulheres que anunciam velhice tardia e imponente.(...) Mas a grande distinção daquele rosto, aquilo que mais prendia os olhos, eram os olhos; imaginem duas esmeraldas nadando em leite.”. Detalhe mais significativo de Margarida: era viúva. O desaparecimento de Miss Dollar e a publicação do anúncio fizeram com que Mendonça conhecesse Margarida. Missa Dollar estava em seu canil. Foi entregá-la e conhece a paixão. É Andrade o personagem que informa ao Mendonça a viuvez de Margarida e o fato de ela já ter rejeitado cinco casamentos. Andrade foi uma das vítimas.”Mendonça desde esse momento tratou de cortejar assiduamente a viúva; Margarida recebeu os primeiros olhares de Mendonça com um ar de tão supremo desdém, que o rapaz esteve quase a abandonar a empresa; mas, a viúva, ao mesmo tempo que parecia recusar amor, não lhe recusava estima, e tratava-o com a maior meiguice deste mundo sempre que ele a olhava como toda a gente.” Mas a viúva não correspondia. No fundo ela tinha medo de os pretendentes estarem apenas interessados nos bens que ela possuía. Mendonça partiu para o ataque e resolveu escrever uma carta abrindo o jogo. Andrade disse-lhe que fizera mal. Todos os outros pretendentes fizeram a mesma coisa e foram rejeitados. Mas Margarida respondeu. Ele escreveu outra, mas não houve resposta. Mendonça afastou-se. Um dia, D. Antônia, tia de Margarida, vai visitá-lo, diz que a viúva está doente e que o amava. Isto depois de uma visita noturna inesperada de Mendonça ao lar de Margarida, numa hora pouco recomendável. Fato é que Mendonça e Margarida se casaram. “Foi modesta e reservada a cerimônia do casamento. Andrade serviu de padrinho, D. Antônia de madrinha; Jorge falou no Alcazar a um padre, seu amigo, para celebrar o ato.
D. Antônia quis que os noivos ficassem residindo em casa com ela. Quando Mendonça se achou a sós com Margarida, disse-lhe:
- Casei-me para salvar-lhe a reputação; não quero obrigar pela fatalidade das cousas um coração que me não pertence. Ter-me-á por seu amigo; até amanhã.”.
Fato é que tudo acabou mais ou menos bem. “Os dous esposos são ainda noivos e prometem sê-lo até a morte. Andrade meteu-se na diplomacia e promete ser um dos luzeiros da nossa representação internacional. Jorge continua a ser um bom pândego; D. Antônia prepara-se para despedir-se do mundo.
Quanto a Miss Dollar, causa indireta de todos estes acontecimentos, saindo um dia à rua foi pisada por um carro; faleceu pouco depois. Margarida não pôde reter algumas lágrimas pela nobre cadelinha; foi o corpo enterrado na chácara, à sombra de uma laranjeira; cobre a sepultura uma lápide com esta simples inscrição: A Miss Dollar.

5 – Missa do Galo

Nogueira vai visitar o amigo Menezes na noite de Natal. Recebe-o Conceição, esposa do amigo. Enquanto aguardava o horário da Missa do Galo, Nogueira tem longo diálogo com Conceição e a mãe dela. Com o sono da mãe, Conceição ficou a sós com o convidado. A ausência do marido e o ato de vestir um roupão dão o toque de sensualidade a permitir ao leitor imaginar o início de um adultério. Bem que Conceição faz seu papel, mas quem parecia conter-se era Nogueira. “Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a idéia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo.Fato é que o amigo da hora marcada chegou no momento crucial: Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: "Missa do galo!” (...) “Na manhã seguinte, ao almoço falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.”

6 – O espelho


O conto é narrado em terceira pessoa. Quatro ou cinco senhores debatem questões em torno de um novo esboço da alma humana, como reza o sub-título. O local é uma casa no alto do morro de Santa Teresa. O quinto membro do grupo não falava, não discutia. Era Jacobina. Casmurro, capitalista, instruído. Foi chamado a opinar. Não quis, mas narrou um fato a partir da idéia de ter o ser duas almas. “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para entro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; — e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.” Jacobina inicia a narrativa do fato. Ele era pobre, tinha 25 anos e foi nomeado alferes da Guarda Nacional, motivo de orgulho de toda a família. Uma tia sua, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, pediu-lhe que fosse ao sítio dela. Lá, Jacobina era tratado como autoridade. Era Sr. alferes pra lá, Sr. alferes pra cá. O entusiasmo da tia era tão grande que chegou a colocar um enorme espelho no quarto do sobrinho. O tratamento era superior. Daí, “— O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado”.  Mas a tia fez uma viagem inesperada e o alferes ficou só com os escravos. Também tratado com gentilezas pelos escravos, não percebeu que estavam armando fuga. Indo os escravos embora, Jacobina ficou só. Viveu dias de solidão e abandono. No fim de oito dias, “deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido”. Mas, em seguida: “— Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho.”
Em contato com sua alma, enfrentou mais seis dias de solidão sem maiores preocupações.

7 – A chinela turca

O bacharel Duarte está pronto para ir ao encontro de dois belos olhos, namorados de uma semana, quando recebe a visita do major Lopo Alves. Além de ser enfadonho, Lopo Alves aparece numa hora inoportuna e traz consigo um drama. Claro, queria a opinião embasada do bacharel sobre os seus dotes literários. Ao todo, 180 páginas em 7 quadros recheados de mortes, suicídios e lágrimas. A leitura do drama fez chegar meia noite e decretar o fim do baile. De repente,  Lopo Alves se ergue e sai de cena irritado, um homem gordo aparece e o acusa de roubar uma chinela turca. É preso e levado para um lugar exótico. Lá descobre que a chinela turca era uma metáfora. Ele havia roubado o coração de Cecília, sua namorada. Duarte é levado a um lugar e um homem lhe apresenta a dona da chinela. Era belíssima e parecida com Cecília. Ele teria que se casar com a moça, fazer o testamento e tomar veneno. Antes do casamento, um padre propõe que ele fuja se atirando pela janela. Sai correndo desesperadamente, rompendo obstáculos, até chegar em sua casa e avistar o major Lopo Alves que lia o último quadro de sua enfadonha peça teatral. Duarte tivera um pesadelo enquanto o major lia seu drama. “Duarte acompanhou o major até à porta, respirou ainda uma vez, apalpou-se, foi até à janela. Ignora-se o que pensou durante os primeiros minutos; mas, a cabo de um quarto de hora, eis o que ele dizia consigo: — Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original, substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi um bom negócio. Um bom negócio e uma grave lição: provaste-me ainda uma vez que o melhor drama está no espectador e não no palco.

   8 – Teoria do medalhão

  O conto pauta-se no diálogo entre Janjão e seu pai. Janjão vai completar a maioridade e o pai resolve dar-lhe conselhos. O melhor ofício? O de medalhão.” Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e entende. És moço, tens naturalmente o ardor, a exuberância, os improvisos da idade; não os rejeites, mas modera-os de modo que aos quarenta e cinco anos possas entrar francamente no regime do aprumo e do compasso. O sábio que disse: "a gravidade é um mistério do corpo", definiu a compostura do medalhão.”. A tônica da narrativa é mostrar todo um aparato de atitudes sociais que beneficiam aqueles que adotam o comportamento do medalhão. Ou seja, é, na verdade, uma crítica ao comportamento artificial dos nossos vultos sociais. Ao final, o pai sugere ao filho, já com 22 anos, que leia O príncipe, de Maquiavel.

9 – Pai contra mãe

Narrado em terceira pessoa, o conto trata de Cândido Neves, o Candinho, que vivia de capturar escravos fugidos, depois de tentar vários ofícios. Casou-se o protagonista com Clara, que morava com Mônica, tia da moça. Após o casamento, a idéia de ter um filho começa a ganhar corpo e enfrentar a resistência de Mônica. Ela sabia que o casal não tinhas condições financeiras para tanto. O filho veio e as despesas também, mas os escravos fugidos estavam rareando. A concorrência aumentara. “Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Rua dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria.”  Sem solução aparente para resolver o problema, Candinho foi levar seu filho para a Roda, instituição que cuidava de menores. De repente, avistou uma mulata fugida que procurava e que lhe daria boa remuneração. Era mesmo a mulata Arminda. Deixou a criança numa farmácia e foi à captura. “Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus.
--Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço!
-- Siga! repetiu Cândido Neves.
--Me solte!
--Não quero demoras; siga!”
Levada aos sopapos, Arminda foi entregue ao seu senhor, mas perdeu a criança. Candinho recebeu os cem mil réis salvadores e correu em busca do filho.” O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.
--Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.

10 – A cartomante

Camilo e Vilela eram amigos de infância. Amigos inseparáveis. Vilela era magistrado e Camilo virou funcionário público. Um dia, Vilela encontra Rita. Apaixona-se. Casamento. Camilo era quase irmão de Rita. Vira seu amante. Triângulo amoroso e visitas constantes de Rita a cartomantes para ter a certeza de que Vilela de nada sabia. “Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo. 
Mesmo assim, Camilo continuou desconfiado e procurou a ajuda de uma cartomante, após receber um bilhete de Vilela convidando-o a uma visita.” A cartomante não sorriu: disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas. três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela. curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela: ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita. . . Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
Na casa de Vilela é recebido pelo amigo. Rita está morta e Camilo é assassinado com dois tiros certeiros.

11 – Uns braços

 Inácio era o agente do solicitador Borges. Tinha quinze anos e vivia no mundo do aéreo. Era filho de um barbeiro da Cidade nova. No início do relato, Borges se queixa da falta de aptidão do rapaz para os afazeres burocráticos. Inácio, no fundo, vivia um mundo de solidão. Pensou em fugir, mas uma coisa o segurava: os braços de D. Severina, esposa do Borges. “Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso. Agüentava toda a trabalheira de fora toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços. D. Severina começou a perceber que toda distração do garoto era paixão por ela. Inicialmente  foi tomada por vaidade, depois chegou a pensar em contar ao marido. Por fim, resolveu ser áspera e não dar chance ao garoto, para que ele pudesse esquecer tudo. Com o tempo, a aspereza de D. Severina foi diminuindo e o rapaz chegou a ser tratado com certo carinho. Inácio, por sua vez, sonhava com D. Severina. Era a única coisa que fazia suportar a vida que levava. Um dia, deitado na rede, e após leitura de folhetins, Inácio cai no sono e sonho com D. Severina. Ela, após a saída do marido, olha para o quarto e contempla o garoto e se imagina no sonho dele.” D. Severina ter-se-ia visto a si mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto diante da rede, risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-las ao peito, cruzando ali os braços, os famosos braços. Inácio, namorado deles, ainda assim ouvia as palavras dela, que eram lindas cálidas, principalmente novas, — ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele não conhecia, posto que o entendesse. Duas três e quatro vezes a figura esvaía-se, para tornar logo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o corredor com toda a graça robusta de que era capaz. E tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca.” O sonho coincidiu com a realidade. O garoto sonhava e D. Severina realizava a ação. Mas ela recuou com medo de que o garoto pudesse estar fingindo que dormia. Mas ele dormia muito. Na idéia dele fora apenas um sonho. Quando saiu da casa do Borges, o garoto achou estranho D. Severina não se despedir dele.

12 – Um homem célebre

A temática é a mesma de Cantiga de esponsais. O protagonista desta vez é o Pestana. Maestro das polcas, Pestana lutava para criar sua grande obra. “Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia: ele corria ao piano para aventá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas era em vão: a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado, ao piano, deixava os dedos correrem, à ventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart: mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça: mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano.” E voltavam-lhe apenas as inspirações de polcas populares, feitas para inaugurações, vitórias do partido a ou b. Veio o casamento com Maria. Daí esperava tirar a inspiração para um noturno. Conseguiu, mas era idêntico ao de Chopin. Foi a própria Maria quem o alertou. A mulher veio a falecer. Tentou um réquiem, não deu certo. Desistiu. Voltou a fazer polcas, adoeceu. “Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que não sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarineta de teatro , referiu-lhe o estado do Pestana , de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que instou para que lhe dissesse o que era, o editor obedeceu.
— Mas há de ser quando estiver bom de todo, concluiu.
— Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana.
Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarineta foi pé ante pé preparar o remédio; o editor levantou-se e despediu-se.
— Adeus.
— Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais.
Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo. “

domingo, 9 de setembro de 2012

terça-feira, 4 de setembro de 2012

O Boca do Inferno por Fernando Rocha Peres


Fatos Documentados e Lendas Relativas a Gregório de Mattos e Guerra

Publicado em  A Tarde, 07.12.1996.

Gregório de Matos e Guerra (1636-1695)
Insinua-se nas dobras do tempo, a obra de Gregório de Mattos e Guerra (1636-1695), a despeito de jamais ter sido autografada pelo poeta. Sombras encobriram os escritos hoje atribuídos ao baiano filho de portugueses, entre o século XVII, quando ele viveu e circularam seus poemas satíricos pregados às escondidas por anônimos nas paredes de prédios públicos, e o século XVIII, no qual copistas os perenizaram em códices apógrafos. Neste final do século XX, já há mais luzes sobre a vida e o legado gregorianos. Cronista da sociedade seiscentista, intérprete crítico do seu tempo, religioso, lírico, herético, Gregório de Mattos e Guerra estava longe de ser figura unânime na sociedade seiscentista. O que, como defende João Carlos Teixeira Gomes, estudioso da obra do poeta, talvez o tenha impedido publicar em Portugal seus poemas "bem comportados". Tais desmedidas motivaram preconceitos contra a poesia satírica, erótica e escatológica de Gregório de Mattos até o início deste século, como observa o historiador Fernando da Rocha Peres. O resgate do corpus gregoriano só viria a ocorrer com o lançamento de Gregório de Mattos — Obra Poética, organizada por James Amado, em 1968, hoje disponível em dois volumes pela editora Record. As portas do século XXI, Gregório de Mattos está em voga, através de mídias inimagináveis no período em que viveu. Ele navegará no cyberspace da Internet através de uma home-page, com textos sobre o poeta, poemas em português e vertidos para o alemão, chinês e italiano, bibliografia básica e material iconográfico. Seus poemas ganharam o suporte de um compact disc, na voz da atriz Nilda Spencer. Seu nome foi refrão de um rap defendido pelo cineasta Edgard Navarro num festival de música popular. Proliferam as publicações acerca do poeta e sua obra, tendo sido a mais recente de autoria da professora da UFBA e dramaturga Cleise F. Mendes. Há 360 anos de seu nascimento, Gregório de Mattos e Guerra é, mais do que nunca, personagem para o futuro. Em torno da data e com o tema o poeta renasce a cada ano. No evento, serão lançados carimbo comemorativo da data, o livro Sete poemas, de amor e desespero, de Maria dos Povos, à partida do poeta Gregório de Mattos para o degredo em Angola, de Myriam Fraga (edições Macunaíma) e o CD Boca do Inferno, coordenado por Maria da Conceição Paranhos, com interpretação de Nilda Spencer e música de Nico Rezende (edições Cidade da Luz). Organizador do evento, o historiador e poeta Fernando da Rocha Peres, aborda adiante, em entrevista, fatos documentados e lendas relativas a Gregório de Mattos e Guerra, revelando que a aproximação temática entre a obra do poeta do século XVII e a do seu contemporâneo, o padre Antônio Vieira, será tema de seus próximos estudos.

Ao que parece, novos dados biográficos sobre Gregório de Mattos estão condicionados ao aparecimento de novos documentos. Por que alguns registros-chave, como o de batismo e óbito do poeta não são encontrados?

F.R.P. - As lacunas sobre a vida de Gregório de Mattos de certo modo já foram preenchidas, quando fiz a revisão da biografia escrita no século XVIII por Manuel Pereira Rabelo. Se estes dados, de registro de nascimento e óbito, não foram encontrados é porque essa documentação deve ter perecido. A certidão de batismo deveria estar aqui, no arquivo da cúria metropolitana, e hoje não se encontra mais. O registro de óbito deveria estar em Recife, onde ele faleceu. Eu estive pesquisando aqui na Bahia, em Pernambuco, em Portugal e o que pude encontrar sobre Gregório de Mattos foi, como disse Antônio Houaiss, o suficiente para uma reescritura da biografia do poeta. Creio que a data de nascimento e a de morte já estão suficientemente fixadas.

Nestes 13 anos desde a publicação da revisão biográfica de Gregório de Mattos, de sua autoria, surgiram muitos dados novos? O que poderia ser acrescentado em uma nova edição?

F.R.P. - Esses fatos novos já surgiram e foram acrescentados em outras publicações que fiz. Alguns documentos estão, como costumo dizer, na encubadora, porque, em verdade, um trabalho em cima de fontes primárias é um trabalho lento. Temos que checar as informações documentais de todas as maneiras possíveis. De 1983 para cá, muita coisa já foi acrescentada. Por exemplo, o fato de Gregório de Mattos ter sido provedor da Santa Casa de Misericórdia de uma vila portuguesa, Alcácias do Sal, onde ele foi juiz de fora. A descoberta de uma terceira sentença dele, publicada pelo jurista do século XVII Emanuel Alvares Pegas. O levantamento que fiz mais sistemático sobre a família extensiva do poeta, da questão referente ao processo inquisitorial contra ele, de 1865. Todos esses dados serão acrescidos a uma nova edição ou, quem sabe, a um desenho novo do poeta.

Que tipo de documentação se encontra no Brasil? Há informações sobre a passagem do poeta no Colégio da Bahia, dos jesuítas?

F.R.P. - Infelizmente não existe nada, porque quando os jesuítas saíram daqui, no século XVIII, deixaram a biblioteca e o arquivo. Vilhena, cronista da Bahia do século XVIII, nos informa que os papéis do colégio foram vendidos para serem usados como embrulho de gêneros na área do Terreiro de Jesus e no Pelourinho. Toda documentação primária, levantei basicamente em Portugal, em Coimbra e em Lisboa. Há aqui um registro no arquivo da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, quando ele entrou para irmão da Santa Casa. Este é o único documento primário. As outras informações relativas a Gregório existentes na Bahia, estão, algumas delas, publicadas nas atas e cartas dá Câmara da Cidade do Salvador, hoje a Câmara de Vereadores. Há muita informação sobre ele, que foi Procurador da Bahia, defendeu os interesses dos proprietários de engenho de cana e defendeu o quanto pode a criação de uma universidade na Bahia, no século XVII. Registros não só dele, também de seu pai, avô, e irmãos estavam em documentos cujos originais já não existem mais, mas por sorte foram Publicados pela Prefeitura Municipal da Cidade de Salvador.

E sobre o magistrado Gregório de Mattos?

F.R.P. - Sobre o juiz de fora, juiz do cível, representante do Brasil nas cortes, há documentação em Portugal — na Torre do Tombo ou na Biblioteca Nacional de Lisboa. É o caso do documento do casamento dele em Lisboa, que era absolutamente ignorado. É um documento autógrafo no qual ele diz ter 25 anos, em 1661, o que resolveu a questão da data de nascimento. Outro documento precioso é o de batismo de uma filha natural que ele teve em Lisboa, com uma mulher chamada Francisca. Os arquivos portugueses são organizados. No Brasil, lamentavelmente, não guardaram essa documentação dos séculos XVI e XVII. Está quase toda ela destruída pelo tempo, pela umidade, pelos insetos, pelos fungos, pelo desleixo.

Fernando Rocha Peres - pesquisador sobre Gregório de Matos
Há pesquisadores portugueses debruçados sobre a biografia de Gregório de Mattos?

F.R.P. - Sobre a biografia, não que eu saiba. Está havendo hoje em Portugal e, podemos dizer, em grande parte da Europa — na Itália, Alemanha, Noruega, Espanha — um interesse pela obra do poeta. Pela obra apógrafa que ficou guardada nos manuscritos existentes em Portugal, no Brasil, na Biblioteca Nacional, e pelo manuscrito agora existente na Bahia, datado de 1775. São manuscritos feitos por copistas portugueses ou baianos. Acredito que os documentos fundamentais já estejam suficientemente assentados, levantados. Mas, poderá surgir, em um ou outro arquivo ainda não organizado, público ou particular, uma documentação que venha a esclarecer determinados detalhes da vida de Gregório de Mattos.

Há uma polêmica entre críticos, quanto a situar Gregório de Mattos com poeta brasileiro. É possível que expressões do nosso vernáculo e a incorporação de vocábulos africanos e indígenas — elementos presentes nos poemas de Gregório — tenham ocorrido nos apógrafos e não partido do poeta?

F.R.P. - Não, evidentemente estes poemas, na sua grande maioria, podem ser atribuídos a Gregório. Podem ser até mesmo datados com base em seus conteúdos. Expressões da língua nativa, mais falada na costa do Brasil, vocabulário africano, vocabulário espanhol — já que todo português letrado era bilíngüe tudo isso compondo, junto com o latim e o francês uma babel de falares que os poetas naquela época usavam, não elide o Gregório de Mattos. Ao contrário, isso é típico do barroco e aqueles que querem defender a brasilidade do poeta, o fazem por esse viés de que ele é um barroco brasileiro, nativo, ou, como eu mesmo cheguei a dizer, um barroco gentio. Ao se expressar, na sua poesia, com esses falares ele revelou urna realidade local. Há uma poesia de Gregório de Mattos feita em Portugal, anterior a 1682, e uma poesia na Bahia depois daquele ano. Só resta fazer um cotejo entre o que está publicado de outros poetas. Já se sabe o que foi atribuído a Gregório mas é de autoria de Tomaz Pinto Brandão, ou de Dom Tomás de Noronha, ou outros poetas, até mesmo dos quais não se possa indicar o nome.

Seria mais fácil se Gregório de Mattos tivesse publicado em vida seus poemas sacros, ou os líricos?

F.R.P. - Havia muitos poetas na Bahia. Quase todo letrado praticava poesia. Uns cuidavam de publicar, como foi o caso de Manoel Botelho de Oliveira. Gregório não organizou os poemas bem comportados — os poemas líricos e sacros — para uma publicação, lamentavelmente. Há um poema dele em que é mencionado um quarto tomo. É um grande mistério. Será que ele estaria preparando uma publicação, ou tinha conhecimento de que as pessoas estavam organizando sua poesia a mando de alguém? É muito estranho. Ele não publicou e criou esse pequeno problema que, provavelmente, dentro de mais alguns anos, será sanado.

Em que se basearam teses, hoje contestadas, de que Gregório de Mattos seria de uma linhagem mestiça?

F.R.P. - Gregório de Mattos é mestiço na poesia que fez. Sua poesia tem muita mestiçagem, até mesmo agressiva, na medida em que ele assume um papel preconceituoso contra o negro, o mulato. De modo algum ele pode ser considerado etnicamente um mestiço, um mulato. Era descendente de galegos que vieram da cidade de Guimarães e se instalaram na Bahia no início do século XVI. Naquela época, havia uma triagem através de um processo chamado habilitação de gênere. O sujeito que fosse mestiço — tivesse sangue de mouro, de judeu, de africano, ou como eles chamavam, “sangue de infecta nação” — ou que decendesse de oficial mecânico não poderia freqüentar a Universidade de Coimbra nem ser nomeado pelo rei para exercer uma função de juiz. Na sua poesia, Gregório em todo momento está se auto-referenciando como branco e honrado. Sua linguagem é mestiça e esse é seu grande mérito.

A partir de que período começa a surgir, ou circular em Salvador, a produção poética de Gregório?

F.R.P. - É curioso que a maioria dos códices apógrafos sejam do fim da primeira metade do século XVIII. A poesia de Gregório circulava oralmente e, como ele chegou a denunciar, em forma de pasquins. O poeta se irrita com isso dizendo que muita coisa que circulava não era de sua autoria, era atribuída a ele. As pessoas copiavam um poema de autoria de Gregório e colavam na parede ou porta da Catedral. Poemas geralmente investindo contra as autoridades civis, militares e eclesiásticas. Os poemas satíricos têm esse percurso, principalmente se não são poemas muito longos. Tudo isso foi se juntando. As pessoas copiaram de alguma maneira e isso permaneceu guardado nos códices do século XVIII. Há uma lenda de que um governador contemporâneo de Gregório, D. João de Alencastro, colocou no palácio um livro para que todas as pessoas que soubessem de cor um poema de Gregório o copiassem ali. Esse códice nunca foi localizado.

O que se pode falar com segurança da relação entre o poeta e o padre Antônio Vieira?

F.R.P. - A relação entre Vieira e Gregório se deu mais largamente aqui na Bahia. Ambos vieram para cá quase no mesmo momento. Vieira confinou-se no colégio, especificamente na Quinta do Tanque, onde escreveu sua sermonária. Na poesia de Gregório existe algumas referências ao Padre Antônio Vieira. Existem também alguns temas que Padre Vieira abordou nos Sermões e que Gregório também abordou nos poemas. Sobre isso estou preparando um trabalho para apresentar no próximo ano, no tricentenário da morte do Padre Antônio Vieira. Não gostaria de me adiantar muito, mas há essa possibilidade de aproximação. Vieira era um homem da corte, foi confessor do restaurador do império português, D. João IV, foi embaixador plenipotenciário, teve muita influência. Gregório também teve muita influência, fez uma carreira na magistratura, foi juiz em Lisboa, veio para a Bahia ocupar um cargo importante. Vieira era da família dos Ravasco e Gregório, dos Mattos da Bahia, como ele se intitula. Havia aproximação entre esses sujeitos que, sendo do clero e proprietários rurais, faziam parte do grupo dominante.

Por que Gregório de Mattos não chegou a ser preso pela inquisição?

F.R.P. - Segunda a denúncia, ele tinha aqui na Bahia um modo solto de cristão. Era considerado um herege. Praticava determinados atos e dizia determinadas coisas que contrariavam a igreja. Principalmente, ele escreveu alguns poemas contra o denunciante. O promotor do eclesiástico Antônio Roiz da Costa, foi motivo da chacota em mais de um poema. Defendo a posição de que o processo não foi levado a termo porque a denúncia era de difícil comprovação e principalmente porque a família de Gregório tinha ligações com a inquisição. O avô do poeta foi familiar da inquisição do Santo Oficio aqui na Bahia, nomeado pelo visitador D. Marcos Teixeira. Esta condição do avô fez com que Gregório acumulasse, dentre outras coisas, um prestígio enorme, a ponto de não ser molestado pela inquisição.

Sobre o período em que Gregório de Mattos esteve em Angola, o que se pode afirmar?

F.R.P - Ele sai daqui em 1694, porque os dois filhos do governador Antônio Luis Gonçalves da Câmara Coutinho, contra quem ele tinha escrito poemas terríveis, queriam matar o poeta. Os amigos de Gregório, inclusive o sucessor do governador (D. João de Alencastro), fizeram uma espécie de conluio. Colocaram o poeta numa embarcação que saía daqui para Angola, levando cavalos do rei. Há um poema muito engraçado dele descrevendo esta saída e maldizendo a Bahia. Na Angola, houve uma troca do padrão monetário, do zimbo (um pedaço de pano que circulava como dinheiro) pela moeda em cobre. Com essa troca, os militares começaram a receber um soldo menor. Eles se rebelaram e fizeram do bacharel Gregório de Mattos o interlocutor junto ao governador de Angola. Gregório acaba traindo esses militares e, em troca, pode voltar ao Brasil para morar em Recife, já que ele não podia vir à Bahia sob risco de ser assassinado. Há um poema onde ele relata esse fato. Localizei fontes que asseguram o envolvimento dele com militares e, num segundo momento, uma aproximação com o governador. Os militares foram presos, os líderes condenados e mortos. Como ele contraiu em Angola a malária, chegou em Recife, em 1695, e morreu no mesmo ano.

NUM VÔO EM TEMPESTADE

“O grande poeta inicial da literatura brasileira”, é assim que o professor João Carlos Teixeira Gomes, autor de Gregório de Matos, o Boca de Brasa — um estudo de plágio e criação intertextual, se refere, ao refletir sobre o legado do poeta nascido há 360 anos. Na entrevista que se segue, ele destaca que até o século XVIII era usual absorver a tradição na criação literária, "condicionada pelas normas da imitação". Defende, portanto, que o diálogo entre os poemas satíricos de Gregório de Mattos e Guerra e a obra de Quevedo, por exemplo, "é um processo legítimo e fecundante ".

Pode-se falar de dois Gregórios de Mattos — um magistrado, ligado ao clero e cuja poesia é sacra e lírico-amorosa; outro libertino e autor de poemas satíricos?

F.R.P. - Sim, há inclusive estudiosos que dividem a poesia de Gregório em vários seguimentos temáticos. Por exemplo: poesia sacra, poesia de circunstância, poesia erótica/obscena, poesia lírico/amorosa. Há um Gregório múltiplo, na verdade. Mas, o essencial para a literatura brasileira é o satírico.

Por que o satírico?

F.R.P. - Gregório de Mattos era uma personalidade eminentemente satírica. Tendo vivido em Portugal grande parte de sua vida, ele tomou conhecimento da obra do grande poeta satírico espanhol Quevedo, que foi fundamental na sua concepção de poesia. Se Gregório se limitasse a fazer poesias sacras, líricas, de circunstância, jocosas não teria sido o grande poeta que foi na literatura brasileira. O fato de ter entrado em confronto com a sociedade baiana depois que voltou de Portugal provocou essa veia satírica com mais intensidade. Através dessa linha de poesia, ele se firmou como o grande poeta inicial da literatura brasileira.

Ha críticos que não aceitam Gregório de Mattos como um dos nomes inaugurais de nossa poesia. O que o senhor acha disso?

F.R.P. - Até o século XVIII, a criação literária estava muito condicionada pelas normas da imitação, que começaram a se desenvolver mais intensamente na Europa, a partir do Renascimento. Podemos dizer que toda poesia de conteúdo amoroso do Ocidente até o século XVIII é calcada na poesia de Petrarca. O fato de um poeta seguir determinados cânones, previamente estabelecidos por outros poetas, e basear sua criatividade na teoria da imitação, não diminui o valor de sua obra. Na época de Gregório de Mattos, dois pólos eram essenciais na criação literária da Península Ibérica: Quevedo e Gôngora. Gregório afastou-se de Gôngora, na parte melhor da sua poesia, e se deixou influenciar pelo clima da poesia de Quevedo. Isso o tomou, inclusive, um poeta original. Quevedo teve uma vida pessoal semelhante à de Gregório, foi perseguido político, preso. Gregório foi desterrado. Havia o que alguns autores chamam de afinidades eletivas entre os dois. Quevedo fecunda Gregório de Mattos, que absorve esse legado e o adapta às condições da Bahia, transforma isso de uma forma pessoal e consegue realizar uma obra de grande importância, através dessa linha satírica.

A presença, na obra de Gregório de Mattos, de elementos da língua espanhola, vocábulos africanos, indígenas e do português falado no Brasil, são traços particulares do poeta?

F.R.P. - Gregório de Mattos usou sobretudo os termos indígenas e africanos no sentido pejorativo, para estabelecer uma comparação negativa com determinados elementos importantes da sociedade baiana da época, que se davam ares de grande destaque. Quando utiliza esse vocabulário — que enriquece muito sua poesia — o faz com o sentido satírico e não com a preocupação barroca de acrescentar elementos múltiplos à criação. Mas ele realmente ampliou os meios expressionais da poesia barroca do Brasil, pela incorporação de vocábulos indígenas e africanos.

Para o crítico, torna-se difícil se desvencilhar da personalidade de Gregório para concentrar-se numa análise que se detenha no texto, ou mesmo intertextual?

F.R.P. - A obra de Gregório de Mattos sobreviveu através de apógrafos. Não há um único poema assinado por Gregório entre os mais de 700 que James Amado reuniu nos sete volumes da edição das obras completas. Aspectos da vida do poeta se harmonizam com a visão satírica que os poemas revelam. Na mesma época, existiram poetas dessa linha satírica, cuja linguagem se aproxima muito da de Gregório de Mattos. Mas, certas situações só poderiam ter sido vividas por um poeta satírico que aqui estivesse radicado. Saber, por exemplo, que ele foi demitido do cargo de tesoureiro da Sé, pouco depois de chegar à Bahia, lança luz sobre o fato dele ter uma aversão profunda pelo clero. As informações biográficas estabelecem certos nexos que ajudam a compreender a poesia satírica de Gregório de Mattos e conceber que realmente um poeta como ele a escreveu. O estilo de época era muito universal, os procedimentos poéticos do barroco, os recursos retóricas, os tropos eram uniformes entre a poesia portuguesa, a castelhana e, naturalmente, a poesia brasileira, da época. Esta recebia influência natural, um processo normal de intertextualidade, das duas outras — sobretudo da poesia castelhana, que influenciou também poesia portuguesa. O gongorismo foi avassalador. Já o quevedismo é a particularidade satírica de Gregório de Mattos. Embora Quevedo tivesse, por exemplo, escrito poemas de uma inquietação religiosa, sobretudo uma obsessão com a idéia da morte, do aniquilamento físico do homem. Esse problema de apógrafos não atinge só à obra de Gregório. Há uma boa quantidade de poemas de Quevedo e do próprio Gôngora que não foram publicados com assinatura, sobre os quais existe grande controvérsia,

Quando a posição ideológica do poeta contrária às instituições estabelecidas se afirma?

F.R.P. - As pesquisas, inclusive realizadas pelo professor Fernando Peres, mostram que Gregório de Mattos ocupou cargos importantes na magistratura de Lisboa, o que para um brasileiro, na época, era de grande significado. Ele casou-se com a filha de um magistrado importante, o que deve ter facilitado seu acesso, mas não bastaria para que ele fosse nomeado magistrado em Lisboa. É no retomo ao Brasil que o lado satírico se aguça, embora atribuam a ele um poema escrito em Portugal chamado Marinicolas. Poderia afirmar com convicção, pelo estudo que fiz, que o Gregório importante para a literatura brasileira nasce com a volta à Bahia. Há uma mudança na sua conduta de vida, concepção de mundo e nas suas relações sociais. Ele começa a ser o homem que ia com os amigos fazer grandes caçadas e farras no Recôncavo, ou nos bairros afastados de Salvador daquela época — Brotas, Rio Vermelho... — nomeados na poesia dele. Passa a atacar os padres, os representantes do poder constituído, as relações econômicas Brasil-Portugal. Era um homem de família rica, mas um produtor rural brasileiro prejudicado pela política portuguesa. Em alguns poemas, ele denuncia inclusive que as naus de Portugal vinham cheias de pedras e voltavam abarrotadas com as riquezas da terra. Até por esse aspecto sua poesia é importante, porque já revela uma certa consciência anti-colonialista se formando nas elites econômicas brasileiras da época. Muitos críticos dizem que Gregório não tinha sentimento patriótico. Como nós temos hoje em dia, certamente não. Mas, ele tinha o sentimento de um produtor rural contrariado nos seus interesses econômicos. Sentia como a presença de Portugal no Brasil era prejudicial a esses interesses.

Sobre a influência, o senhor chega a falar de uma postura próxima à antropofágica?

F.R.P. - No meu livro (Gregório de Matos, o Boca de Brasa um estudo de plágio e criação intertextual) estudei a força da tradição da sátira ibérica sobre Gregório, um procedimento legítimo, natural, fecundante, rico. Não como uma diminuição, como foi hábito até certo tempo. A crítica brasileira não estava aparelhada para perceber a importância desse jogo intertextual. É uma assimilação devoradora, digamos assim. Gregório assimilava essas coisas e as transformava em coisas nossas. A parte satírica da sua obra é fundamental como um momento da evolução da consciência (eu diria) brasílica, mais que brasileira — esta ainda não existia, no sentido da independência.

Nos poemas de Gregório que se repetem em diferentes códices há muitas variantes?

F.R.P. - Sim, porque aquilo tudo era copiado a mão. Os copistas, depois de um certo tempo, se cansavam. Há variantes inexplicáveis, que desfiguram completamente o sentido do poema. Isso não atingiu apenas à obra de Gregório, mas a toda a produção da época. A poesia lírica de Camões, por exemplo, é toda ela duvidosa. Camões teve publicados em vida três poemas, em locais diferentes. Nunca publicou, ele próprio, um poema de sua autoria. Sua obra lírica é toda póstuma. Não podemos dizer que Gregório, não tendo deixado um códice autenticado, está com toda a obra sob suspeita. Nesse caso teríamos que afastar também a obra de Camões, poeta que realizou a tradição petrarquista, em sua poesia amorosa, de forma eficiente e bela.

Que tipo de critério faz um estudioso, como o senhor, escolher determinada versão de um poema de Gregório?

F.R.P. - Aquela que mais guarda coerência com a própria estrutura lexical do poeta em outros poemas. Todo poeta tem um arsenal verbal e retórico, usa com mais freqüência determinadas expressões, determinados tropos, determinadas figuras de retórica. A construção da frase guarda certas características.

Esse é um dos aspectos mais difíceis para uma análise da obra de Gregório?

F.R.P. - Tudo é muito difícil quando não há indicação de autoria. É como se fosse um vôo em tempestade, não se sabe o que vem pela frente. Ninguém pode dizer com certeza absoluta que o legado que está aí é de Gregório nem que o legado lírico de Camões é de Camões. Há critérios que se estabelece, hipóteses de trabalho louváveis, que constituem um avanço, mas não dão certeza nenhuma de fidelidade autoral. O próprio fato de haver tantos códices atribuídos a Gregório indicam haver, na época em que ele viveu, um poeta com o nome dele e que provocava grande interesse.

Em alguns poemas Gregório de Mattos se mostra incomodado com a destinação dada a sua poesia?

F.R.P. - Ele deveria escrever com esta finalidade. Como ele não assinava os poemas, prendê-lo por isso ninguém poderia. Só se o flagrassem distribuindo panfletos na rua, o que ele não fazia. Há inclusive um poema, localizado por mim, em que ele diz que os moleques de rua distribuíam sua poesia. O que mostra ser possível até que ele fizesse cópias e mandasse distribuir, sobretudo quando atacava às autoridades. Ele certamente gostava muito que sua poesia satírica atingisse o objetivo, não escreveria aquilo para ficar guardado.

As fontes da sátira de Gregório de Mattos, serão tema de sua próxima palestra. O que o senhor aborda, especificamente?

F.R.P. - A tradição vinda da literatura greco-romana. Sobretudo, a partir da influência castelhana e portuguesa. A tradição satírica na Península Ibérica através da poesia do escárnio e do mal dizer, da poesia medieval satírica muito, freqüente em Portugal na época, passando por Quevedo. E curioso dizer que Gregório esteve na Bahia com um poeta português, chamado Tomás Pinto Brandão, muito semelhante a ele na maneira de versificar e de encarar certos fatos da Bahia, o que toma ainda mais confuso identificar as origens da poesia satírica de Gregório e de certos poemas que estão nos códices. A poesia de Tomás Pinto Brandão ficou num códice curioso intitulado Pinto renascido que foi publicado. Esse poeta viveu na Bahia com Gregório, fazendo farras. Parece que eles escreveram alguns poemas a quatro mãos. Há poemas de Pinto Brandão muito parecidos com os de Gregório, como se ele os imitasse.
Fonte: Jornal da Poesia.