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sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Segredos eternos de Marília de Dirceu


Estudos põem em dúvida se Maria Doroteia, ou a Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga, se manteve fiel ao amado até o fim de seus dias
Marília de Dirceu entre o mito e a realidade
Ana Jardim - do portal da Revista de História.
Esta é a história de uma moça muito jovem, seduzida por um forasteiro português com poemas de amor numa terra onde brotava o mais puro ouro, no Brasil do século XVIII. Uma semana antes do casamento, a rainha mandou prender o poeta e seus companheiros que lutavam pela liberdade. A moça esperou para sempre a volta do seu príncipe. Bem, essa, pelo menos, é a história que sempre nos contaram.
No dia 23 de maio de 1789, Maria Doroteia Joaquina de Seixas (1767-1853) foi deixada para trás pelo noivo, Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), preso por participação na Inconfidência Mineira, e nunca mais tornou a vê-lo. Mas será que ela se manteve fiel até o fim da vida? Antes de completar um ano de degredo, Tomás já estava casado em Moçambique com a filha de um rico comerciante. Maria Doroteia, famosa por inspirar o livro Marília de Dirceu (1792), permaneceu em Vila Rica, hoje Ouro Preto. Não se casou nem teve filhos que reconhecesse como legítimos. Mas alguns vestígios trazem revelações sobre a vida da musa da Inconfidência Mineira.
Diferentemente das esposas de outros inconfidentes deixadas para trás com filhos para criar ou bens para reclamar, Maria Doroteia ficou solteira e condenada a viver à sombra da imagem poética criada por Tomás Antônio Gonzaga. Eternamente leal ao amor cantado nos versos de Marília de Dirceu.
Ela nasceu em Vila Rica. Foi batizada na Matriz de Nossa Senhora do Pilar no dia 8 de novembro de 1767 com o mesmo nome de sua mãe. Seu pai, Baltazar João Mayrink, era capitão do Regimento de Cavalaria Regular. Tinha dois irmãos mais novos, José Carlos Mayrink, que viria a ser senador do Império, e Francisco de Paula Mayrink, tenente-coronel de Cavalaria, e duas irmãs: Anna Ricarda de Seixas Mayrink e Emerenciana Evangelista de Seixas Mayrink, casadas com militares. Órfãos de mãe ainda crianças, Maria Doroteia e os irmãos ficaram aos cuidados do tio e de tias.
Tomás A. Gonzaga
Tomás Antônio Gonzaga nasceu no dia 11 de agosto de 1744 na cidade do Porto, em Portugal. Seu pai era o magistrado João Bernardo Gonzaga, natural do Rio de Janeiro, e sua mãe era Tomásia Isabel Clarque, nascida no Porto. Tomás ficou órfão de mãe em maio de 1745 e foi entregue aos cuidados de tios. Veio morar no Brasil ainda menino com o pai, que tomou posse em 1752 do cargo de ouvidor-geral da Capitania de Pernambuco. Tomás seguiu para a Bahia, onde estudou no Colégio dos Jesuítas até 1759, quando a Companhia de Jesus foi expulsa do Brasil pelo marquês de Pombal. Em 1761, ele retornou a Portugal para estudar na Universidade de Coimbra. Em 1768, colou grau de bacharel em Leis e se transferiu para a cidade do Porto, onde exerceu a advocacia.
Maria Doroteia era uma moça de 15 anos quando Tomás Antônio Gonzaga veio de Portugal para Vila Rica a fim de assumir o cargo de ouvidor, no fim de 1782. No século XVIII, não era costume as moças e mulheres de famílias distintas saírem desacompanhadas. Por isso, é bem provável que o quase quarentão Gonzaga tenha conhecido e ganhado intimidade com Maria Doroteia enquanto frequentava a casa do seu tio, Bernardo da Silva Ferrão, chefe de considerada família da capital de Minas Gerais. O convidado se enamorou da sobrinha do seu amigo advogado. Uma moça belíssima, pelo retrato que dela fez o poeta.
Naquelas longínquas paragens do Brasil colonial, Gonzaga compôs muitas liras para seduzir sua musa, dando a ela o nome poético de Marília e chamando a si mesmo de Dirceu.

Ando já com o juízo,
Marília, tão perturbado,
Que no mesmo aberto sulco
Meto de novo o arado.
Aqui no centeio pego,
Noutra parte em vão o cego;
Se alguém comigo conversa,
Ou não respondo, ou respondo
Noutra coisa tão diversa,
Que nexo não tem menor.
Que efeitos são os que sinto?
Serão efeitos de Amor?

Minha Marília,
Se tens beleza,
Da natureza
É um favor.
Mas se aos vindouros
Teu nome passa,
É só por graça
Do Deus do amor,
Que, terno, inflama
A mente, o peito
Do teu pastor.

Mesmo diante de sentimento tão arrebatador, algumas questões curiosas pairam no ar. Uma delas é que em 1786 Tomás foi nomeado desembargador da Relação da Bahia, e não é compreensível a presença dele em Minas Gerais ainda em 1789, quando a Inconfidência Mineira foi denunciada. Por que não se casou e foi assumir o seu cargo na Bahia durante todos esses anos? A explicação pode ter relação com seu envolvimento na conspiração contra a Coroa portuguesa. E se Tomás demorou tantos anos no namoro, por que marcou seu casamento às pressas quando soube que estava ameaçado de prisão? O movimento foi denunciado por Joaquim Silvério dos Reis em 15 de março de 1789. Em 20 de abril, Gonzaga procurou o visconde de Barbacena, governador de Minas, e pediu licença para casar-se no dia 30 de maio. O governador concordou e Gonzaga ficou tranquilo, acreditando que, com a desculpa de que estava ocupado com o casamento, escaparia da acusação de participar do movimento.
Quando os inconfidentes foram denunciados e presos em maio de 1789, Maria Doroteia tinha 21 anos, e o namoro com Tomás já devia ter cerca de seis.  Ele passou ainda três anos preso no Rio de Janeiro, aguardando julgamento antes de ser deportado. Durante esse período, escreveu na masmorra a segunda parte dos poemas dedicados à musa Marília.

Nesta cruel masmorra tenebrosa
Ainda vendo estou teus olhos belos,
A testa formosa,
Os dentes nevados,
Os negros cabelos.

 Em sentença de 20 de abril de 1792, Tomás Antônio Gonzaga foi condenado a dez anos de degredo em Moçambique. Partiu do Brasil no dia 23 de maio e chegou a seu destino no final de julho. Ele refez sua vida, e no depoimento para se casar, no dia 9 de maio de 1793, com Juliana de Souza Mascarenhas, declarou “que nunca dera palavra de casamento a pessoa alguma”. Com a esposa Juliana teve dois filhos: Ana e Alexandre Mascarenhas Gonzaga. Adoeceu no final de 1809 e morreu em Moçambique no início de 1810.
Maria Doroteia continuava em Minas Gerais. A esta altura, tinha 42 anos e já vivera muitas experiências na sua vida sem Tomás. Em algum momento, é provável que os fatos mais importantes chegassem ao seu conhecimento, como o casamento do ex-noivo ou sua morte. Durante sua vida longa, ocupou-se de assuntos da casa, obrigações religiosas, demandas da família, realização de testamentos e inventários, bordados, trabalhos domésticos e toda sorte de atividades atribuídas às mulheres. Sobreviveu a vários parentes e entes queridos, como seu pai, o tio e as tias que a criaram. Mesmo sendo a mais velha, foi a última dentre seus irmãos a falecer. O abandono e o envelhecimento de Maria Doroteia repetem na mulher a sina de uma Vila Rica já quase abandonada. Foram as duas escasseando do ouro, da beleza, do tempo, da juventude, e se preservando do assédio dos olhares externos.
 A fama dos poemas do livro Marília de Dirceu se espalhava. Entre 1792 e 1810, ele foi reeditado sete vezes. A família real portuguesa já estava vivendo no Brasil havia dois anos, e a edição de Marília de Dirceu de 1810 foi a primeira a ser publicada no Brasil pela Imprensa Régia. A constante reedição do livro fazia com que a fama da personagem Marília se propagasse e muitas pessoas fossem a Vila Rica procurá-la. Queriam ver a mulher que inspirara o gênio poético de Gonzaga. Uma popularidade que talvez soasse estranha para Maria Doroteia: ser reconhecida por poemas escritos tanto tempo antes e por um amor que não se concretizara.
Com a morte do tio, Maria Doroteia se tornou herdeira e testamenteira. No inventário de 1820, ele aparece como o “Exmo. Marechal de Campo João Carlos Xavier da Silva Ferrão”.  O tio deixou para ela todos os bens. O principal foi a casa em que vivia, no Largo do Antônio Dias, em um terreno amplo. Ali ela passou praticamente toda a sua vida. Da antiga casa do ouvidor, onde Tomás morou quando chegou a Vila Rica, resta ainda uma perfeita visão, até hoje conhecida como a casa de Marília, alimentando a imaginação das pessoas. Outro prédio foi construído no local, abrigando atualmente a Escola Estadual Marília de Dirceu.
Em 1836, com 69 anos, ela providenciou e assinou seu testamento, que o tabelião aprovou em 16 de maio de 1840. Dele constam como seus testamenteiros e herdeiros Dona Francisca de Paula Manso de Seixas, que vivia com ela, e o Sr. Anacleto Teixeira de Queiroga, residente no Rio de Janeiro. Maria Doroteia era madrinha de batismo de Anacleto, mas alguns autores afirmam que ele era filho ilegítimo dela com um homem chamado Dr. Queiroga. Essa história gerou polêmica entre pesquisadores e descendentes da família de Maria Doroteia. Uns brigando para manter intacta a imagem de pureza e virgindade da mulher que se tornou a musa da Inconfidência Mineira; outros, pelo direito da mulher de reconstruir sua vida com outro homem.
O debate registrado em livros só teve início alguns anos depois da morte. O viajante inglês Richard Burton, em Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, publicado pela primeira vez em Londres em 1869, relata que lhe foi contado que “um certo Dr. Queiroga, Ouvidor de Ouro Preto, teve a honra de suplantar o poeta Gonzaga, mas não com ternura legalizada. Em Ouro Preto ela é hoje, talvez, mais conhecida como a Mãe do Dr. Queiroga”, que seria Anacleto.
A informação foi contestada posteriormente por Thomaz Brandão, um primo em quarto grau de Maria Doroteia. Em 1932, ele publicou um livro também chamado Marília de Dirceu. A primeira preocupação do livro é assegurar que ela morreu donzela. O primo afirma que Anacleto era filho do Dr. Queiroga com Emerenciana, e que a irmã caçula de Maria Doroteia teria passado toda a gravidez na fazenda de sua irmã Anna Ricarda. Quando o filho nasceu, foi deixado na porta de um casal de amigos, que o criou como enjeitado, e Maria Doroteia o batizou. A madrinha teria amparado a criação de Anacleto desde a infância.
 É certo que Maria Doroteia também poderia ter ocultado uma gravidez e deixado o filho na porta dos amigos, batizando o menino posteriormente. No mesmo período, ela também andava pelos lados da fazenda, distante dos olhares curiosos de Vila Rica, segundo o próprio primo vigilante da honra deixa escapar. Mas tudo são suposições de versões conflitantes que, embora precisem ser conhecidas, jamais poderão ser apuradas, pois repousam no baú dos segredos familiares.
Avançando um pouco no tempo, encontramos no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, na edição de 18 de janeiro de 1893, uma nota de falecimento: “Faleceu o major Pedro Queiroga, neto de Marília de Dirceu, vítima de lesão cardíaca.” A nota do final do século abre mais lacunas onde não foram fechadas as anteriores.
Maria Doroteia morreu aos 85 anos, no dia 10 de fevereiro de 1853. Morava com Francisca na casa herdada do tio. Em seu testamento, deixou algumas missas encomendadas para sua alma e um último pedido: ser sepultada na Igreja de São Francisco de Assis. O pedido não foi atendido, pois foi sepultada na Matriz de Nossa Senhora da Conceição.
A notícia da morte foi publicada no Marmota Fluminense – Jornal de Modas e Variedade, em nota assinada pela prima e poetisa Beatriz Francisca de Assis Brandão, que diz: “Maria Dorothéa era dotada de espírito vivo e elegância natural; tinha bons ditos, respostas prontas e adequadas; lembranças felizes, que faziam apreciável sua conversação, sempre adubada desse sal ático, que também a fazia muitas vezes temível, quando propendia para o sarcasmo, que praticava com a maior graça e firmeza”. Vemos ampliar-se à nossa frente a imagem de Maria Doroteia, diferenciando-a daquela frágil e singela musa do poeta inconfidente. A prima descreve uma mulher de força e atitudes próprias. Parece bem mais interessante vislumbrar a ideia de que Gonzaga teria se apaixonado por uma mulher inteligente, além de bela, firme, além de graciosa.
Com Maria Doroteia sucedeu o mesmo que ocorre com os mitos: a morte serve para fortalecê-los. É realmente difícil resistir ao brilho fulgurante do mito dentro da história. Sua proporção e seu volume crescem quanto mais questões indefinidas pairam sobre sua história, reverberando e propagando-os infinitamente.
A propagação do livro Marília de Dirceu ultrapassou o período do Romantismo. Em 1944, o presidente Getulio Vargas repatriou os restos mortais dos inconfidentes. Em 1955, os restos mortais de Maria Doroteia foram retirados da Matriz de Nossa Senhora da Conceição e levados para o Museu da Inconfidência, com o objetivo de ficarem com os de Gonzaga. Lá permanecem para apreciação pública. Finalmente juntos os personagens líricos Marília e Dirceu.
 Em julho passado, a prefeitura de Ouro Preto inaugurou um busto de bronze dedicado a Marília de Dirceu. Colocado na antiga Casa do Ouvidor, tem duas faces indefinidas e, no peito, o “Sonoro passarinho,” mensageiro do amor de Tomás Antônio Gonzaga para sua musa.

Meu sonoro Passarinho,
Se sabes do meu tormento,
E buscas dar-me, cantando,
Um doce contentamento,
Ah! não cantes, mais não cantes,
Se me queres ser propício;
Eu te dou em que me faças
Muito maior benefício.
Ergue o corpo, os ares rompe,
Procura o Porto da Estrela,
Sobe à serra, e se cansares,
Descansa num tronco dela,
Toma de Minas a estrada,
Na Igreja nova, que fica
Ao direito lado, e segue
Sempre firme a Vila Rica.
Entra nesta grande terra,
Passa uma formosa ponte,
Passa a segunda, a terceira
Tem um palácio defronte.
Ele tem ao pé da porta
Uma rasgada janela,
É da sala, aonde assiste
A minha Marília bela.
Para bem a conheceres,
Eu te dou os sinais todos
Do seu gesto, do seu talhe,
Das suas feições, e modos.
O seu semblante é redondo,
Sobrancelhas arqueadas,
Negros e finos cabelos,
Carnes de neve formadas.
A boca risonha, e breve,
Suas faces cor-de-rosa,
Numa palavra, a que vires
Entre todas mais formosa.
Chega então ao seu ouvido,
Dize, que sou quem te mando,
Que vivo nesta masmorra,
Mas sem alívio penando.

O culto aos mitos não tem fim. Maria Doroteia morreu, mas Marília é imortal.

Ana Jardim é professora de Arte no Cefar – Fundação Clóvis Salgado e coautora de Marília de Dirceu?  (Edição do autor, 2007).