Lomadee, uma nova espécie na web. A maior plataforma de afiliados da América Latina.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Dossiê Canudos(3): A mídia em campanha

Na defesa de interesses políticos e disseminando preconceitos, imprensa ajudou a construir o massacre anunciado em Canudos
                                *Dawid Danilo Bartelt 
O cadáver de Antônio Conselheiro (foto: Flávio de Barros)
“Há bons seis meses que por todo o centro desta e da Província da Bahia, chegado, (diz elle,) do Ceará, infesta um aventureiro santarrão que se apelida por Antonio dos Mares: o que, a vista dos aparentes e mentirosos milagres que dizem ter ele feito, tem dado lugar a que o povo o trate por S. Antonio dos Mares”. Publicada em novembro de 1874 em O Rabudo, um pequeno semanal editado em Estância, no Sergipe, esta foi, ao que se sabe, a primeira menção da imprensa brasileira a Antônio Conselheiro. Nos 23 anos seguintes, o personagem se tornaria a peça principal do grande acontecimento “Canudos”, que foi também um evento midiático nacional.
“Opinião pública” era algo muito limitado nos primeiros anos republicanos. Cerca de 85% da população eram de analfabetos e a mídia se restringia basicamente a veículos impressos (as rádios viriam a transmitir com regularidade no país apenas a partir de 1922). Isso significa que os iletrados, os escravos e boa parte da população rural ficavam à margem das notícias da imprensa, embora também incluídos na discussão pública através da cultura oral.
Para o pequeno grupo de indivíduos letrados existia uma grande variedade de jornais e revistas, de diferentes orientações ideológicas. Desde 1894 nos jornais baianos, e de forma rapidamente crescente nos jornais da capital nacional e de São Paulo, Canudos e Conselheiro não apenas provocaram notícias nas páginas principais como viraram título de colunas e motivo para versos de carnaval, sátiras e anúncios comerciais – como o desta loja de calçados de Salvador, já em 1897: “Por pessoas, recentemente chegadas de Canudos, ouvimos o seguinte: Que no último ataque, um grupo de valentes soldados, depois de ter esgotado a munição, lembrou-se de correr a pontapés os conselheiristas, confiados na resistência do calçado que foi comprado na popular casa O Monumento. Que feliz ideia!”.
Num tempo em que fotografias impressas em jornais eram raridade, o retrato desenhado do Conselheiro tinha valor de mercado – a figura de barba longa, túnica, sandálias e bengala era reconhecível mesmo sem o nome ao lado. Era já um signo, no sentido expresso por um oficial do Exército, em 1896: “Antonio Maciel, Antonio Conselheiro e Bom Jesus são três nomes distintos, mas, que um só deles basta para exprimir e concretizar o inimigo do regime atual, o pregador contra os princípios sacrossantos da lei, do trabalho e da moralidade”.
Mais do que uma “revolta” contra a República, Canudos foi um acontecimento útil para dois diferentes conflitos de poder nos tumultuados primeiros anos do regime. Com sua enorme capacidade de atração popular, o tamanho do seu mercado e seu potencial bélico, o arraial do Conselheiro desequilibrou os poderes políticos na Bahia, há tempos tensionados pela disputa entre o governador Luís Vianna e o dono das terras daquela região, José Gonçalves, aliado ao Barão de Geremoabo. Enquanto isso, na capital nacional, Canudos virava fator decisivo para outra competição acirrada: a luta entre os oligárquico-liberais, representando a elite cafeeira paulista, e os “jacobinos”, influenciados pelo pensamento desenvolvimentista-ditadorial de forte base militar. Vencer essa guerra era uma questão de sobrevivência política para o governo do paulistano Prudente de Morais. Era por isso, e não por constituir uma ameaça real à República, que o arraial tinha de ser completamente aniquilado.
A função “crítica” da imprensa se esgotava na defesa de posições partidárias dos proprietários, e não em prol da defesa de princípios constitucionais ou democráticos. Em Salvador, com uma população total de 200 mil habitantes (a grande maioria não alfabetizada), circulavam cinco grandes jornais. O Diário da Bahia e o Estado da Bahia eram gonçalvistas, enquanto o Correio de Notícias, o Jornal de Notícias e (com restrições) o Diário de Notícias apoiavam o governador Vianna. Depois que os seguidores do Conselheiro derrotaram as primeiras duas expedições de policiais e soldados contra eles, os jornais da oposição se engajaram numa produção de medo. Intensificaram a estratégia de criminalização aplicada desde 1893, ano da fundação do arraial, desencadeando uma verdadeira campanha, com a publicação de documentos – na sua grande maioria falsos – para “comprovar” repetidos ataques de canudenses a fazendas da região. Levantavam a suspeita de que o governador fazia de Conselheiro um aliado, usando-o para desestabilizar a região controlada por seus adversários.
A partir de março de 1897, no entanto, os dois campos políticos baianos viram-se encurralados juntos por um forte discurso vindo dos jornais do Rio e de São Paulo. As notícias da derrota da terceira expedição e da morte de seu líder, o famoso “herói” coronel Moreira César, causaram pânico nas capitais. No sul, os jornais reforçaram o discurso da conspiração monarquista, já introduzido pela imprensa jacobina. Agora se via toda a Bahia caracterizada como reduto monarquista – afinal, naquele estado não houvera um movimento republicano antes de 1889 e os políticos do Império transformaram-se em republicanos pelas circunstâncias nacionais. Mas a verdade é que o movimento monarquista dos anos 1890 era insignificante fora do Rio e de São Paulo. A acusação de “monarquismo” era parte do discurso dos bacharéis liberais e dos jovens oficiais “jacobinos”, que visavam instalar uma ditadura modernizadora e positivista no Brasil.
O Nordeste, região de primazia econômica do primeiro ciclo colonial, e Salvador, capital da Colônia, estavam em decadência econômica e política. E os discursos midiáticos sobre a guerra de Canudos reforçaram a imagem da Bahia e do “Norte” (o termo Nordeste ainda se usava pouco) enquanto espaços de coronelismo e violência bárbara (dos “jagunços”), incapazes de se modernizarem: “Só se fala em Canudos hoje em dia,/ De norte a sul, pelo país inteiro.../ E o glorioso nome da Bahia/ Amarrado ao de Antonio Conselheiro!”, rimava o Jornal de Notícias.
Os lugares do evento midiático “Canudos” foram as capitais no litoral, mas a principal novidade da cobertura da imprensa nacional estava no sertão. Inaugurava-se a figura do correspondente de guerra, escrevendo reportagens “ao vivo” – que levavam de 10 a 30 dias para serem publicadas, após passarem pela censura militar rigorosa, ser transportadas a pé ou por jegue até Monte Santo e então transmitidas por telégrafo a Salvador (ou de trem, pela estação ferroviária de Queimadas), de onde enfim seguiam para o sul. Na época, ainda desconhecido do público fora do seu estado natal, o engenheiro Euclides da Cunha se tornaria o mais famoso desses correspondentes de guerra.
Quando Euclides chega a Canudos, o discurso midiático, construído de forma intensiva, diária, ao longo de um ano, já havia produzido seu efeito final, e mortal: o governo do presidente Prudente de Morais decidira destruir Canudos a todo custo. Morreram milhares de famílias sertanejas, numa das maiores chacinas da história brasileira. Mas os relatos de Euclides e de seus colegas ao menos contribuíram para uma mudança na percepção dos canudenses pela opinião pública. Enquanto durante a guerra foram considerados “inimigos da nação”, depois de mortos foram simbolicamente reincluídos. Os inimigos se tornam irmãos e são considerados vítimas por muitos.
Já não foi a imprensa a protagonista desta mudança de perspectiva. O debate se transferiu para tratados científicos, como o de Nina Rodrigues em 1897, panfletos políticos, uma série de crônicas publicadas em livro por oficiais e civis participantes da guerra e livros romanceados, como Os Jagunços, de Afonso Arinos, e O Rei dos Jagunços, de Manuel Benicio, correspondente do diário carioca Jornal de Commercio. Os Sertões, de Euclides, foi publicado cinco anos depois do fecho da guerra.
Assim como Canudos propicia debates até hoje, continua atual a discussão em torno do papel da mídia no Brasil enquanto formadora de opiniões sobre como a “nação” deve tratar os que se encontram nas suas periferias social, econômica e cultural.


*Dawid Danilo Bartelt é doutor em História pela Universidade Livre de Berlim, diretor do escritório Brasil da Fundação Heinrich Böll e autor de Sertão, República e Nação (EdUSP, 2009). (Artigo publicado originalmente na Revista de História da Biblioteca Nacional  - dezembro de 2014)